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Capa livro: Autobiografia

 

Lisboa: O Jornal, 1987, Col. Autobiografias nº3, capa c./ foto de Inácio Ludgero (1986)

 

 

 

 

Autobiografia

 

O Jornal, Lisboa, 1987

 

Contar a minha vida. Sempre que me falam nis­so, imagino-me sentado num banco de cozinha, com um grosso camisolão, ombros caídos, a olhar por uma janela alta e estreita o que ela deixa ver da floresta. Alguém deixou um machado na peque­na clareira em frente da janela. Andarão a rachar lenha. Grandes aves esvoaçam lá por fora, não muito alto decerto. E, além disto, silêncio. O pro­fundo silêncio do que não volta mais.

 

Mas que floresta? Nunca vivi em nenhuma flo­resta. Nem sequer perto de. Talvez uma lógica in­terna — penso então — comande os próprios des­mandos do nosso pensamento. E esse indivíduo mais ou menos ruço, no meio da cozinha lajeada, olhando o que não existe, queira dizer apenas que tudo foi bastante diferente do que eu teria deseja­do. Ou será a suspeita (uma quase certeza) de que contar a nossa vida é impossível. Por isso, à ideia de lembrar o que vivi e como, correrei a meter-me na pele de um qualquer em que mal me reconhe­ço. É o que se chama atropelamento e fuga.

 

 

ao canto do piano, vector 2

 

Na rua Andrade, número dois, rés-do-chão, ao canto do piano. Eis o que, em garoto, invariavel­mente respondia a quem me perguntava: onde é que tu nasceste? Ouvira qualquer coisa parecida, transformara-a. As pessoas gostavam de ouvir a patetice. Faziam-me repeti-la. Eu repetia-a. Ainda sem saber que 1916 havia de carregar-se deste pe­so todo nos meus ombros, confundindo, para mim, esse ano dos princípios do século com o começo do Mundo. Ano de guerra mundial — a «Gran­de»! — por onde o meu pai andou a fazer não sei o quê. Fotografias datadas de cidadezinhas france­sas, que encontrei muito depois da sua morte, não cheiram nada a trincheiras nem a pólvora. Com ca­maradas, em bancos de jardim, outros em volta, todos milicianos com certeza, correia do cinturão a tiracolo, com polainas (reluzentes), sem polainas, boné ou capacete de campanha. Nalgumas dessas fotos esmaecidas, aparece, mascarado de mulher, era muito dado à festa, e não só ele, pelos vistos. Que mulheres mesmo, «les petites françaises», as «mon petit chou», as dos «déjeuners sur 1'herbe» nos dias de licença, não faltariam, olha quem, mas do lado da máquina, a gozar a brincadeira, fotogra­fias para a família, para as esposas chorosas, para os filhos, coitadinhos, cuidadinho. Com essas fo­tografias, duas medalhas baças, escuras. «São as medalhas do teu pai.» Que fizera para merecê-las? Ele o sabia. Se seriam um prémio como que de presença. O que ele não sabia é que, anos e anos mais tarde, quando já não seria mais que pó e os­sos sob a terra longínqua (Tete, em comissão de serviço, a ganhar o pão de cada dia), o filho viria a fazer o seu curso universitário sem pagar propinas por ser órfão de combatente. Com bom aproveita­mento, já se deixa ver.

 

Porque houvera uma grande mudança. O aluno pouco mais que medíocre no liceu1 tomava corpo nas salas penumbrosas da antiga Faculdade de Le­tras, afinava a própria voz e ensaiava gloriazinhas locais. Embora nem tudo fossem rosas, longe dis­so. E mesmo as rosas têm espinhos, toda a gente o sabe bem. Dum desaire importante e bastante ines­perado ficou-me só a pobre consolação de ter sido o primeiro a pronunciar em sessão pública naquela velha Casa, o nome de Pessoa. Bem antes, pois, de nascer e se espalhar por esse mundo fora o culto «pessoano», a que nos sentimos hoje todos obriga­dos, no duplo sentido da palavra. Estava-se em 1938 e era um trabalho bem modesto, apressado, superficial, uma pretensa introdução à leitura da «Ode Marítima». Para pouco mais que analfabetos. Coisas de que ainda coro. E se o arguente (Agos­tinho de Campos) lhe teceu, ao contrário do que eu esperava, tão desmedidos elogios, e perante tan­ta gente, só pude e posso atribuí-lo à audácia do tema, que era ali, também para ele, completa novidade. Já entretanto publicara, ainda no liceu, uma revista, Prisma, que só tivera um número, como merecia, e dois livrinhos (dois livrecos) que viria a riscar da minha tábua bibliográfica, tão verdes me haviam de parecer em breve. Sonetos e sonetilhos por aqui e por ali. Já fundara, co-dirigira e pagina­ra, em 34, o semanário Gleba. Já entrara para a redacção de Liberdade, a convite da gente mais des­temida desse tempo, tal como sucedeu, no mesmíssimo dia, ao Álvaro Cunhal, logo a seguir, ao Magalhães Vilhena. Como, anos depois, em 39, com um grupo maior, o grupo propriamente dito, ficaria à testa de O Diabo, escrevendo talvez de mais e, ao mesmo tempo, enviando o que podia ao Sol Nascente e a tudo o mais que aparecesse. En­fim, a pátria agradecida vos contempla.

 

A supradita rua Andrade — um dos vectores a ter em conta, chamemos-lhe o número 1 — era (e é) ali aos Anjos, onde o meu avô (paterno) consu­miu a vida, sempre activo, muito alegre, atrás do seu balcão — fazendas, botões, nastros, linhas e retroses —, com altos e baixos de respeito na cur­va da prosperidade. O piano era o outro vector — chamemos-lhe o número 2. O avô (materno), que morava no Saldanha e tinha uma revista de teatro e música, Eco Artístico — vão-se anotando as diferenças... — dera à filha o curso superior do Conservatório (de piano, é evidente) e incutira nela o culto de Camilo e outros que tais, coisas que em casa dos futuros sogros seriam conhecidas, sim, mas só de ouvido.

 

Dois estratos, portanto, de uma pequena--burguesia trepa-trepa ou trepa-que-não-trepa, a meio palmo de distância na craveira social, mas com as suas rivalidades fervilhando em lume bran­do sob os sorrisos do bom entendimento, tem de ser. De um lado, herdei o respeito pelo trabalho e pela palavra dada, o dizer as coisas cara a cara, uma costela ainda orgulhosamente popular; do ou­tro, o amor da arte, a atracção do invisível e um pendorzinho aristocratizante que há em todo o ar­tista, seja ele qual e como for. Além disto (não es­quecer), o avô paterno era almeidista e o materno, franquista. Os almoços de domingo, mesa grande e toalha muito branca, com a família toda reunida, e, a partir de dada altura, acrescentada com um novo membro (esse, afonsista!), acabavam sempre em clima de procela. Sem que os elementos femininos percebessem porquê tanto barulho. «Vá, acabem lá com isso.»

 

 

poder escolher

 

Filho único, não cheguei, porém, a contrair as maleitas de tão vantajosa situação, ou depressa de­las me curei. Mas não ponho as mãos no fogo. Quem sabe se uma sensibilidade às vezes exagerada (nunca tive vergonha de chorar, se é caso disso) não virá daí mesmo?

 

Sem pai aos onze anos (tinha ele trinta e qua­tro), sem avô paterno aos quinze (o materno já lá ia há muito), sem mãe aos dezassete (tinha ela trin­ta e oito), vivendo depois com uma avó atingida por doença mental, que uns tios haviam de levar para sua casa, longe, cedo me vi completamente só, cercado pelos tais lobos do homem, aliás exce­lentemente engravatados, os pequenos, melífluos sorrisos, mão rapace. Senhores! Como é que, com dezassete anos e a exclusiva experiência de menino de família, se administra um prédio a cair aos bo­cados, ainda por cima hipotecado — era a heran­ça —, e se lida com usurários que exibem na pare­de, por trás da secretária, este dístico solerte que nunca mais esqueci: «A melhor maneira de perder um amigo é emprestar-lhe dinheiro»? O caminho era vender, vender depressa, ainda que ao desbara­to, pagar tudo e mais que fosse e, depois, ficar roendo o que restasse. Se alguma coisa restasse.

 

Foi então com certeza que nasceu em mim para todo o sempre o horror ao mundo dos negócios, o conceito de explorado e explorador (muito antes de ler Marx), a ânsia quixotesca de transformar a vida (nem de nome conhecia ainda Lenine), a descober­ta de que o trabalho é a única solução para quem, não preferindo suicidar-se, queira viver com algu­ma dignidade numa sociedade que a não tem. Mas trabalhar em quê?

 

Houve aqui um factor decisivo. O desapareci­mento dos meus pais, ambos tão jovens e em tais circunstâncias. Ele, em Africa, por falta de meios de tratamento. Ela, em Lisboa, por erro de diag­nóstico: tinha uma pleurisia e tratavam-na de cál­culos nos rins! Vêm-me acordar, alta noite, «meni­no, menino, a sua mãe!», corro ao hospital, ouço-a dizer — ou julgo ter ouvido — «sê sempre bom, meu filho», descem-lhe a cama articulada, enquan­to o dia desponta, atalham-lhe os queixos, como se aquilo não fosse já a minha mãe e não era, a ver­dade é que não era. Eis o que explicará aquela an­gústia, aquele cepticismo tão pouco próprios da idade. Uma visão do mundo alheia a toda a espe­rança, que a versalhada que fazia bem deixaria ver, se, com louvável e oportuna sensatez, a não tivesse rasgado. O mais negro do Antero é que me sabia bem. E o Nobre, está claro. Embora já não fosse meu livro de cabeceira. Mas tanta desventura deu--me afinal (cinicamente se diria: há males que vêm por bem) a felicidade suprema de poder escolher.

 

A família destinara-me a Direito. E lá tinha as suas razões, sobre as quais ninguém me ouvira. Assim se usava ao tempo. Mas agora, que podia fazer de mim o que quisesse (nem sempre é doce a liberdade), de modo algum me apanhariam em Di­reito. Escolher o que menos rende? Por que não? Era Letras o que eu queria. Letras escolhi, com algum equívoco, sem dúvida.

 

 

começa a dispersão

 

Não pensava ainda em ensinar. Dois professores que tivera no liceu (os dois únicos dignos desse no­me entre tantos que me couberam em sorte, em Lisboa e em Évora) haviam sabido despertar em mim o hábito e o gosto da leitura. E, com eles, um desejo maior: o de escrever. Lembrarei sempre os seus nomes com compreensível gratidão: Arnaldo Mendes um, no meu terceiro ano, tinha eu pois treze, Câmara Reys o outro, no meu quinto, quan­do entrei, portanto, na minha primeira greve (qua­se ainda de cueiros), de solidariedade com a revolu­ção da Madeira.

 

Do primeiro, nunca mais ouvi falar. Senão, umas boas três décadas depois, no fim de um jantar de inesperadas coincidências. «Quem, o Ar­naldo?» — disse alguém por alturas do café — «Coitado!» Deixando este «coitado» envolto num mistério (pena? reprovação?) que pouco duraria. Quanto ao segundo, viria a ser seu companheiro li­terário (na Seara Nova), seu feroz opositor (por causa da Ficha 14 e da sua obstinação em não dei­xá-la publicar)2, de novo seu amigo e companhei­ro, outra vez na Seara (o horror a Salazar operava milagres!) para sempre. Mesmo quando todos lhe cortavam na casaca por ele, velho inconformado, passar as tardes na «Caravela» com mocinhas virtuosas que o chupavam até ao bago que restava. Ele me dissera um dia, com o arzinho risonho de isto aqui só para nós, comentando-me uma redac­ção, e de francês: «Há aqui qualquer coisa. É pre­ciso continuar.» Alvoroço cá por dentro, ah pois não! Recordo-o nessa altura (apesar de então tão jovem!) como uma avó carinhosa, os óculos de aro de prata, a extremidade do nariz redonda e encar­nada: «Há aqui qualquer coisa.»

 

Foi o outro, porém, que mais profundamente me marcou. Aulas de chamamento e transfigura­ção. Um lume ardendo algures e a corrente, como diria o meu velho Jean Guéhenno, por ele passan­do. «O professor só se sente feliz se [as ideias] irra­diam algum calor, em si mesmo contagioso, de tal modo que toda a sua aula acaba por se tornar uma assembleia de espíritos felizes, entre os quais, re­mexendo nas brasas, ele faz crescer as chamas (...). É uma presença transmissora: é por ele que a cor­rente passa.»3 Era por ele que ela passava. E de que modo! Como lia! Como nos levava a ler! Co­mo fazia erguer as chamas! «O carro lento passou e logo atrás surdiu um homem esgrouviado e escu­ro.» A magia do Eça. «Com sua licença —disse mestre João.» Paragem de expectativa, o remexer nas brasas. «Dizendo, fechou por dentro ambas as portas, e sentou-se sobre uma arca.» Atai arca que aparecia ali, talvez se lembrem, para criar o ambiente todo duma vez. Suspensão novamente, agora de outra espécie. «Ora, continuou ele, des­cendo as mangas arregaçadas da camisa e apertan-do-as com dificuldade nos grossos pulsos, como quem sabe a etiqueta das mangas.» Desta vez era o Camilo.

 

Tivera faro o autor da Selecta (Xavier Rodri­gues, se não erro) e muita arte o professor. Não têm conta as vezes que reli estes dois textos, um da Ilustre Casa de Ramires, como se sabe, outro do Amor de Perdição, como também se sabe.

 

Saboreava aquela linguagem nova feita de pala­vras velhas, queria vê-las por dentro, entendê-las com a vista e o ouvido, fazer como, que é o que no princípio mais a gente quer. «Fuja, fidalgo que me perco!... Fuja, que o mato e me perco!» E o fi­dalgo fugindo «na ponta das botas brancas, sobre o chão mole das chuvadas». E o João da Cruz aper­tando as mangas «nos grossos pulsos como quem sabe a etiqueta das mangas», antes de começar o seu discurso. Encantamento! Aquele «na ponta das botas brancas» e aquele «como quem sabe a etiqueta das mangas» ficaram para sempre comigo numa obscura, vivíssima lembrança do poder da simplicidade e do que é afinal literatura. Quem não pensar assim que me perdoe. Mas foi a fome de chegar a qualquer coisa como essas (a ambição de quem começa é desmedida) que me acordou para o amor louco que é escrever. Não sei se de qualquer modo ele viria. Sei que assim foi.

 

Ora Letras (o meu «capuchinho vermelho» as­sim julgava) era a pátria por excelência da leitura e da escrita. No velho casarão, a Jesus, tudo seria li­teratura. Era a morada da poesia.

 

Que ilusão! E essa ilusão («ó avó, para que queres uma boca tão grande?»), foi responsável do meu pri­meiro erro importante, ao que suponho: quando pre­cisei, estudante ainda, de arranjar trabalho, em vez de o procurar numa oficina, por exemplo, como tudo indicaria — pela minha arreigada tendência artesa­nal, pelas «minhas ideias»... — tive a fraqueza de re­correr ao pouco que sabia e começar a dar lições (tor­mento dos tormentos) e até aulas, desastradamente com certeza. Tinha o destino marcado. Eu o marca­ra.

 

Ensinar como simples ganha-pão é repugnante. E era o que então fazia. Num colegiozinho de má morte, ao Bairro Alto, onde o não ter o curso concluído nem possuir qualquer diploma para o ofício permitia ao director pagar-me o que bem lhe parecia. Um director de truz, bigodeira de pontas reviradas, bata branca, que também dava a sua au­la, sim senhor, mas se ocupava muito mais com vender aos cachopos cadernos, lápis, rebuçados... Artigo 1.° (pensava eu, imaginando leis fundamen­tais que deveria haver): é expressamente proibida qualquer forma de negócio em matéria de ensino. Mas só mais tarde sentiria a grande revelação: en­sinar de verdade (forma excelsa de comunicação), reaprender sempre a ensinar, ensinar a ensinar. Como um profissional. Indispensável. Mas também como uma dádiva feliz e inteira, exactamente igual à que exige o acto de criar seja o que for. Depois disso, raras vezes ensinei com sacrifício. Não direi «nunca». Mentiria. O normal era, contudo, fazê-lo com verdadeira entrega interior e algum êxito, pa­rece. Desde a escola do ensino técnico onde verda­deiramente assentei praça (ainda aí só quase ganha--pão, mas já só quase), ao trabalhoso e abençoado estágio, interrompido durante dezoito anos (malhas que o Império tecia...), aos longos anos no parti­cular — não tinha outra saída —, ao ensino secun­dário oficial, em vários dos seus escalões, à meto­dologia, à Comissão de Estudo da Reforma Educa­tiva, a que presidi, logo após o 25 de Abril (era ainda ensinar, era ainda paixão), enfim, à Faculda­de, onde a história acabou quando tinha de acabar4.

 

Nunca consegui convencer deste prazer e sobretudo da sua utilidade os escritores meus amigos. Eles viam na maneira absorvente como ao ensino me entregava a mais indesculpável das infidelida­des. Que assim não podia ser. Que eu não nascera «para aquilo». Nascera «para mais», pensavam eles. E enchia-me de tristeza que não pudessem perceber. O Ferreira de Castro, por exemplo, quan­do, no Verão, estando ele em Sintra e eu em Galamares, nos encontrávamos com bastante frequên­cia: «Cuidado! Não deixe passar a idade. O tempo voa...» Mas os «piores» eram o Carlos de Oliveira, o José Gomes Ferreira, o Cochofel. Porque com estes estava eu todos os dias, tinha-os ali à perna. O Carlos —olha quem! — nem pensar em desar­mar. «Então agora são só pedagogias?» Irónico, implacável. E logo sério, com a amizade do costu­me: «Mas não tem escrito nada? Mesmo nada?» Como se o mundo fosse acabar por isso. Já publi­cara aliás grande número dos meus livros. E men­tia para mudar de assunto. Mas não mentia muito. Na verdade, escrever era o meu vício. Andava às voltas, havia perto de três anos, com o Não há Morte nem Princípio, cujo original ele, a seu tem­po, leria com o empenho que só os amigos sabem o que é. Com o mesmo com que eu lia os dele, cheios ainda de emendas, papelinhos colados, a in­satisfação em carne viva.

 

Salvo em períodos excepcionais, que infelizmen­te não faltavam, todos os dias escrevia. Embora sempre menos do que seria necessário. E rasgava, rasgava. Mas lá disso, espera lá que já ia falar-lhes! Por causa do Carlos, sobretudo, que, ao contrário do que muito tempo se supôs, era um mouro de trabalho, sempre a fazer, a desfazer, a refazer, e eu censurando-o por isso, que assim não podia ser, «deixe-se disso, atire-se a coisas novas». Enquanto eu fazia o mesmo. Que saudades!

 

Mas, às vezes, dizia cá para comigo, à procura de razões, a gente quer sempre ter razão: dedicar tanto tempo a originais alheios, publicar a primeira notícia sobre tantos estreantes, pertencer a júris (que canseira!) de literatura ou arte, por cá e lá por fora, teria sido possível sem uma tão teimosa tendência pedagógica?

 

Que havia de desgraçar-me. Um belo dia, a Sea­ra Nova, numa nota da secção «Factos e Do­cumentos», que era o que se ia logo ler, intitulada «Explicar», que é que havia de dizer? «As críticas de Mário Dionísio, no Diabo, dão-nos uma gratís­sima impressão de espírito crítico verdadeiro, feito de clareza e de bom senso, de coerência, de luci­dez.» E desenvolvia-se a ideia5.

 

Bonito serviço! Não era lá o elogio. Que isso de elogios (alguns tive, como toda a gente) nunca me fez desviar do meu caminho. O pior foi saber-se que a nota da famosa secção, como todas anónima, era do punho do António Sérgio. E, aí, as coisas mudavam de figura, como bem se calcula. Caiu-me tudo em cima (até Sérgio o dizia...) e eu próprio me terei deixado impressionar. O mal que, por bem, o mestre dos Ensaios me fez!

 

Estava apanhado no laço. O meu dever seria, então, criticar, analisar, estimular, ajudar, «expli­car», entrar para o convento, enfim, e deixar-me de outras veleidades. «Faça lá o seu verso» — con-cedia-me um jovem romancista, passando um dedo vagaroso no bigodinho à Menjou e sobretudo inte­ressado em que escrevessem sobre ele —, «mas a crítica é que é o seu caminho».

 

Criticar, em público ou em privado, apreciar originais, sugerir alterações, corrigir erros de língua por de mais arrepiantes se era caso disso, e muitas vezes era, passou a ser o meu dever, a mi­nha obrigação, a actividade número um, a minha canga. De que só tarde, muito tarde, viria a liber-tar-me.

 

Devo, aliás, a esse erro de agulha, ingenuamen­te consentido, ter conhecido pessoalmente, com mais ou menos demora, os Aragon, os Carpentier, os Vittorini, os Moravia, os Carlos Levi, as íris Murdoch, os Semprun, os Vargas Llosa, tantos mais que o vento traz ou leva. E também conhecer outros lados da vida — conhecer não ocupa lugar, ao que se diz —, como no Prémio Internacional de Literatura, a alguns palmos de Corfu, onde os piri­lampos são do tamanho de azeitonas e as azeitonas, de abrunhos, no confortável, moderníssimo hotel, todo por nossa conta (jornalistas, escritores, ho­mens da rádio e das TVs), um quarto dando para a praia, passam secretárias de editores, em biquini, com grossas pastas debaixo do braço, novidades. Um grande editor alemão entra na sala imensa às cambalhotas. É a festa. E a entrega do Prémio Formentor no Casino instalado nos cocurutos da mon­tanha, escadarias fofamente atapetadas, roleta, os terraços barrocos iluminados por grandes lampiões neo-românticos, serviço excelente e permanente ao ar livre, noite fora, já provou esta língua escarla­te?, e a galantine?, aquela a dançar descalça parece mesmo a Elizabeth Taylor, tudo muito «l'année dernière à Marienbad», a dolce vita... Intervalos do lê, anota, volta a ler, escreve lá o artigo.

 

Foi útil o sacrifício? Sinceramente, creio que não. Mas, mesmo que o tenha sido, em parte, um pouco só, onde fui eu buscar essa estranha, quase mística decisão de cingir o cilício? À esperança de ser tudo provisório?

 

A obsessão do dever, o escrúpulo de cumprir o combinado, a tendência para estar sempre a horas (pontualidade = minutos antes de) sempre foi muito forte em mim. Possível conclusão: a educação con­ta mais do que se julga e a actividade clandestina, que é também uma escola, conta ainda mais. E quem pensar que o digo para gabar-me, não es­queça, para não errar, que tal tipo de comporta­mento nunca foi coisa de que artistas costumem orgulhar-se, nem muito propícia, na verdade, à criação. Para certos temperamentos, como o meu: a arte nada tem com qualquer espécie de negócio e tudo com o ócio. De que nasce.

 

Vêm-me à cabeça casos em que espontaneamen­te esta necessidade de cumprir foi posta à prova. Em 1963, tendo aceitado colaborar num número de O Tempo e o Modo, dedicado por sinal ao tema de se «A arte deverá ter por fim a verdade práti­ca», cai-me em cima da cabeça a necessidade de fa­zer uma operação de urgência. «O Carneiro de Moura tira-lhe isso num instante!» – mandou-me dizer o prof. Pulido Valente, que, com a amizade que sempre lhe devi, diagnosticara rapidamente o mal, já no leito de que não mais se levantou. «Isso» era um simpático quisto sebáceo, do tama­nho duma laranja, o sacripanta, bem agarrado à parede exterior do rim, que outros me queriam ar­rancar, não o quisto mas o rim... Em exames pré­vios e inúteis já me tinham provocado uma exce­lentíssima infecção que ia acabando ali comigo. Dei, pois, entrada no Hospital de Santa Maria em estado lastimável, sem tempo nem cabeça para es­crever fosse o que fosse, adeus depoimento. Mas, na véspera da operação, à noite, quando a minha mulher, inquieta, se despedia, até ao dia seguinte (horas boas!, inútil é contá-las a quem as não co­nhece de vivê-las!), digo-lhe eu, a fazer de homem que não treme: «Amanhã de manhã, quando esti­ver na sala de operações, vem ver na gaveta aqui na banca. Se este bloco tiver alguma coisa escrita, passa-a à máquina, por favor, e fá-la chegar ao Bé-nard da Costa. Vou tentar». E assim foi. Quando a enfermeira abriu a porta com os comprimidos da praxe, eu estava dentro da rotina por experiência, pedi-lhe que voltasse dentro de meia hora, poderia ser? Ela que sim, amável, parecia adivinhar, e eu, mal sentado na cama, lá consegui rabiscar em cima dos joelhos, que não sobre o joelho, um pequeno texto que era quase o prometido6. Guardei o bloco na gaveta, esperei o regresso da simpática enfer­meira, engoli os comprimidos e, todo entregue já ao meu destino, apaguei a luz satisfeito comigo. Tinha feito o possível.

 

 

um novo sol no coração do homem

 

Mas Letras não fora só aquele estendal de misé­ria docente (com excepções, sempre há excepções), aquele formigar de jovens, quase todos de nível económico pouco mais que precário (por isso a maioria deles para lá ia), a tentar, ano a ano e ca­deira a cadeira, alcançar o canudo que os encaixas­se na vida. Letras foi também o local privilegiado da minha própria descoberta: o franganote, quase galo, escapa-se da capoeira. Ali me pus a escrever a sério, incluindo a ingenuidade dos começos, que me valeu uma trepa certeira do Álvaro Marinha de Campos, que nunca mais esqueci, tão justa era.7 Ali conheci de perto pessoas de nível excepcional, outras não tanto, outras, as pobres, nem falar nisso é bom. Entre as primeiras, penso logo no Alberto Emílio de Araújo, figura ímpar que este pobre país ignora, no Fernando Piteira Santos, no Alvaro Sa­lema, no Magalhães Vilhena, no Vitorino Maga­lhães Godinho... E, entre os segundos, por exem­plo, num literato que dispunha de corte privativa (era tão coxo que tinha sempre gente frente ao banco de que dificilmente se levantava) e que co--dirigia a revista Momento, uma espécie de réplica da presença, bem fraquinha por sinal (figura tute­lar: António Botto), com a chancela da qual foi editado o primeiro dos tais livros que resolvi es­quecer. Ali intensifiquei a minha actividade políti­ca (clandestina, pois claro), bem empenhadamente, alguns o lembrarão. E isto me lavou por dentro de ter pertencido fugazmente, com os meus dezasseis anos (no bom pano cai a nódoa, quando mais no surrobeco) a um grupinho chamado «Núcleo de Propaganda Educativa/Novos de Portugal» — onde teria eu o nariz?, até o nome cheirava —, uma pífia funçanata que, embora inócua, iria, se lhe dessem algum vento, no sentido oposto àquele que era o meu.

 

Era o tempo do Bloco Académico Antifascista, do jornal ilegal Barricada, do Socorro Vermelho Internacional, saberão o que isso foi. Na casa onde então vivia, sem família, se guardou e organizou algum tempo o material para o órgão do «Socor­ro». Na mesma casa noutra altura: pulo da máquina onde bato um artigo sobre o Maiakovsky, para a Seara. Os ardinas estão a berrar na rua, por bai­xo das minhas janelas: «Rebentou a guerra! Re­bentou a guerra!» Outra guerra. Mais selvagem que todas as passadas.

 

Na Faculdade, pois, a política ilegal e meio--legal: eleições para delegados ao Senado Universi­tário (pela última vez), assembleias para a criação de uma Associação de Estudantes, que não havia e continuou a não haver, protestos contra a expulsão do Prof. Rodrigues Lapa. Ali conheci, enfim, aque­la que seria a minha companheira para sempre, nos bons e nos maus momentos. E nos péssimos também. Como o da grave doença revelada dezoito dias depois do nosso casamento (sangue no chão de tanta felicidade) e que durou três longuíssimos anos. Ela mantinha a casa, ela me inventava a es­perança. Misteriosamente. Alegremente, se assim se pode dizer. Coração mais cabeça e muita dedica­ção, eis de onde vêm os milagres.

 

Mas voltando ainda à Faculdade. Não sabia on­de começava e onde acabava o amor, a luta pela li­berdade e pela transformação do mundo, a criação poética. Engolia o Altolaguirre, o Emilio Prados, o Lorca muito menos (nunca soube explicar isto, te­nha embora um poema que parece inspiradíssimo num dele mas não é: desconhecia ainda o belíssimo «eran las cinco en punto de la tarde»), o Rafael Alberti, mais que todos talvez. Sonhava declamar, como ele, um grande poema na frente de combate. A minha convicção era que versos de tal modo declamados (mas tinham de ser bons, era o que já pensava) fariam recuar os tanques do inimigo, quebrar grades de cadeias, erguer bandeiras com multidões de esfarrapados atrás delas. Armazenar os explosivos. Pegar fogo ao rastilho. Vieram-me dizer: «Foste falado nos interrogatórios desta noite. Põe-te a andar».

 

Desapareci de Lisboa até serem libertados os in­terrogados dessa noite, meti-me no Alentejo, en­contrei gente que só conhecia dos romances de Gorki. Tratavam-me como um irmão, davam-me a chave da própria casa, «para se precisares, de noite». E não eram operários nem rurais. Um tra­balhava numa farmácia, outro nos Caminhos de Ferro, outro num escritório. Chamava-se este Mar­quês. Por meu intermédio entrou na actividade clandestina e, quem o suporia então?, seria morto anos mais tarde nas torturas da PIDE.

 

Quantas horas tinha cada dia? Quantos éramos ao todo? Impossível sabê-lo. Sabíamos, sim, que a situação portuguesa não se podia suportar (e trinta e muitos anos mais a suportámos), que ela se in­tegrava, numa situação internacional a nossos olhos de leitura fácil, que obrigava a tomar e a fa­zer tomar partido. E que a única esperança brilha­va, muito longe, nesta frase do autor de Tomás Gordeiev. «Nasce um novo sol no coração do Ho­mem». Frase que forçosamente se confundia, para muitos de nós, com um país imenso, onde houvera a maior Revolução do nosso tempo, raivosamente defendido de múltiplas e simultâneas tentativas de invasão, heroicamente resistindo à fome, à neve, à falta de quadros superiores: «Proletários de todos os países, uni-vos!» País sobre o qual muito líamos e falávamos, sobre o qual afinal pouco sabíamos e era, seria o centro de tudo durante muitos anos.

 

Ou se mudava o Homem, ou não se mudava nada. Era o que pensava então, é o que penso ho­je. Os versos do meu livro Poemas (36 a 38) disto falavam, os de Terceira Idade (82), também. E o mais que escrevi. Escrever é outra coisa («uma coi­sa é ver, outra pintar», Picasso), mas relaciona-se com tudo.

 

A guerra de Espanha, aqui ao lado, vivida dia a dia e hora a hora com o ouvido colado aos apare­lhos de TSF, por causa das interferências meticulo­samente provocadas, por causa dos vizinhos (fos­sem eles quem fossem), com projectos ansiosos de ir lá ter («Partir./Partir para a pátria instável onde o grito salta das veias», versos meus de 38) e o re­morso de ficar. As notícias diárias dos bombardea­mentos, dos fuzilamentos, das aldeias destruídas, sem pão, sem armas. E o «no pasarón!». O não passarão vibrando no nosso desespero, ainda antes de gritado nas barricadas de Madrid, sentido em silêncio e lágrimas, neste país agrilhoado, esvaziado, com os amigos perseguidos, presos, torturados, muitos deles mortos não se sabia onde.8 Houve um tempo em que nem saber onde estavam se podia.

 

Tudo isso foi raiz (e corpo) do neo-realismo. Do neo-realismo de que participei desde a hora antes do amanhecer, com o Joaquim Namorado, o Re­dol, o Namora, o Fonseca, o Carlos de Oliveira, muitos mais. Do neo-realismo que rapidamente se propagou e diferenciou. Que era e continua a ser motivo de confusões intencionais, involuntárias, talvez inevitáveis. Apesar de tudo o que, também eu, sobre ele escrevi e repeti. Dos estudos que al­guns lhe têm dedicado.

 

Nós amávamos muito e sabíamos pouco. «A re­forma social» (e estética) «esbarrava na própria so­ciedade néscia que havia sido o caldo de cultura dos neo-realistas e também o [de mim] próprio», como bem diz um estudioso do movimento, ele próprio neo-realista, embora não da primeira va­ga.9 Líamos Barbusse, Gorki e Gladkov, os brasi­leiros, misturando Romain Rolland, Oscar Wilde, Tolstoi e Erich Maria Remarque, Panait Istrati e Malraux. Vagamente conhecíamos o Orpheu, pou­co melhor a própria Presença que tão juvenilmente combatíamos. Moralmente, estavam-nos vedadas grandes paixões futuras: o Proust, o Gide, Katherine Mansfield, tantos e tantos mais. Muitas vezes me espanta como, com tão pouca bagagem, podía­mos viajar até tão longe.

 

A luta entre neo-realismo e surrealismo foi em parte um equívoco a que o nosso gueto forçosa­mente nos levou. Ao contrário do que aconteceu em França, o surrealismo em Portugal é posterior ao neo-realismo. Lá, muitos surrealistas, a começar por Aragon e Éluard, se tornaram comunistas e deram então à sua obra um cunho directamente social e político. Aqui, pelo contrário, foram os neo-realistas, não muitos na verdade, que se torna­ram surrealistas e se afastaram duma frente de combate que não lhes oferecia o espírito de renova­ção estética a que aspiravam. Aqui, ao contrário do que aconteceu em França, é a poesia de carácter directamente social que adoptará métodos criati­vos que só o surrealismo poderia fornecer-lhes. Não foi o que eu próprio fiz n' O Riso Dissonante, por exemplo, ou no Feu qui dort: «une pluie de taureaux est tombée sur la ville»? Dizer a verdade é bom.

 

Entretanto, valerá a pena ao menos insistir em que: primeiro, nunca concordei com a designação de neo-realismo, que se deve a uma infeliz inspira­ção de momento do Joaquim Namorado, meu grande amigo até à morte; segundo, para mim, «neo-realismo» não era nem poderia ser uma outra maneira de, por razões de censura, dizer «realismo socialista»; terceiro, para mim ainda, o neo-realismo deveria ser a expressão estética duma vi­são marxista do mundo e, sendo esta tão complexa como se sabe (quem o sabe), aquele movimento — nunca «escola» — teria de desdobrar-se em diver­sas maneiras, gostos, soluções imprevisíveis — o que efectivamente aconteceu. O seu domínio seria o do «extremamente complexo conhecimento dia­léctico do homem» (Lenine). Complexo e dialécti­co, façam favor de tomar nota. Seria a voz duma classe em ascensão, de um mundo (um homem) necessariamente novo, que, como tal, teria de in­tegrar toda a herança do passado, incluindo a da classe a que se opunha. Aí estava a utopia.10

 

Mas que trapalhadas causou sempre a palavra «classe» introduzida no domínio estético, mesmo nos que a defendiam! Que, nos que a rejeitavam, nem falar! Escrevi uma vez um artiguinho, dando largas aliás ao meu interesse ab initio por Pessoa, de modo algum considerando-o «expoente» apenas «dum período literário (...) secundíssimo».11 Pois logo o Eduardo Lourenço me veio puxar as orelhas (sem me citar o nome, é bem verdade, nem isso mereceria...) noutro artigo, inequivocamente intitulado «Explicação pelo inferior ou a crítica sem classe».12 Não haveria mesmo classes? Ou os ar­tistas, além de superá-las, como sempre defendi, conseguiriam, por divina concessão, existir fora de­las?

 

Se houvesse paciência para ler tudo o que, pior ou melhor, escrevi desde o princípio (nem ao meu maior inimigo o aconselho), ver-se-ia que nunca o peso da classe na obra dum artista me fez esquecer que, apesar e através de tudo o que ela, classe, im­põe, essa obra revela o que há de mais profundo e permanente em todo o homem. Num artigo sobre Eluard, por ocasião da sua morte, «Une voix qui nous manque»13, contrariei, no próprio terreno, os que defendiam a existência de uma divisão (ou mesmo oposição) no que o poeta fizera antes e de­pois de pertencer ao Partido Comunista. A propó-. sito escreveu Aragon: «Sem dúvida, esta grandeza [a de Eluard] não nasceu de nada e é um aviso a ter em conta o que nos dá, em Europe, o escritor português Mário Dionísio». Concordava Aragon comigo: a evolução deste poeta «não tem os saltos bruscos, a fácil fixação dos limites, o 'antes' e o 'depois' que alguns quereriam ver nela...»: Acei­tando estas minhas palavras, pensava o autor de Les yeux d'Elsa que «o exemplo 'dos críticos de poesia'», a que se estava referindo, «dá razão a Mário Dionísio». Mas sem deixar de acrescentar: «Todavia, sejam quais forem as raízes profundas do Eluard que se tornou comunista, há, a partir de certa altura, na poesia de Eluard uma transfigura­ção».14 Seguindo-se os passos de ballet habituais no grande escritor. Que, quando isto escreveu (1953), já conhecia bem certos problemas graves que só revelaria doze anos depois num romance, aliás excepcional.15 E, mesmo assim, num romance.

 

 

meu galope é em frente

 

Durante a minha doença — 40 a 43 —, entre as horas de repouso total (se possível, nem pensar; e é coisa que, com treino e muita disciplina, quase se consegue), li e escrevi como nunca até então. O meu conhecimento da vida e de mim próprio apro-fundou-se. Muito. Quer no sanatório (um ambien­te novo, mas não tão outro como esperava), quer em Lisboa, onde, gastas as últimas reservas (da tal venda, ver atrás), o tratamento prosseguiu. Um amadurecimento em todos os sentidos e em todos os níveis. Um reflorescimento ou uma confirmação.

 

Creio ter contribuído alguma coisa para dotar o neo-realismo de uma nova dimensão, outra lingua­gem, na poesia, na ficção, na teoria (a ordem é arbitrária), como os pesquisadores, se os houver e forem capazes de, talvez confirmem. Que não es­queçam as datas por favor.

 

O problema principal, para mim, seria nunca escrever sobre camponeses que só se tinham visto da janela do comboio, de acordo com o que o Na­mora dissera na nota introdutória do seu livro do «Novo Cancioneiro»: «Este é um livro da Terra: da Terra que não foi vista da janela do comboio». Nunca escrever, portanto, sobre camponeses mol­dados nos de romances de alheias literaturas, mas só sobre gente e meios que o autor directamente conhecesse. E tão de dentro quanto possível. Nu­ma entrevista posterior (a tal dada a O Primeiro de Janeiro), tornaria isto bem claro. Era muito natural que, na relação camponeses/operários, os campone­ses fossem os preferidos e bem se entenderá por­quê. A censura tinha os olhos muito mais abertos para o que se referisse àqueles. Os problemas que os operários suscitavam tornavam-nos mais difíceis (perigosos) de tratar. A explosão no campo (a ve­lha pobreza do camponês) era um tema sabido e de algum modo consentido, tinha uma longa tradição que ajudava a ocultar os novos propósitos com que o abordavam, enquanto a exploração na cidade, sobretudo nas fábricas, era inevitavelmente explosiva.

 

Mas não havia só camponeses e operários. Ha­via a sociedade inteira: tudo dependia do «ponto de vista» (ver outra vez a citada entrevista). Havia, nomeadamente, a pequena-burguesia a que todos pertencíamos, que conhecíamos de dentro e que tinha (teria), quanto a mim, um papel importante na situação política portuguesa. Não inventada, mas observada e pessoalmente vivida, a pequena-burguesia permitiria trazer a nossa ficção para a cidade. E foi o que fiz em quase todo O Dia Cin­zento. Por isso terá sido tão mal compreendido quando apareceu. Mas a actividade clandestina lá está, e na cidade. Bastou o pequeno truque de dar nomes estrangeiros às personagens (na l.a edição), simulando, para a censura, tratar-se duma história da Resistência francesa. As pessoas, contudo, as ruas, os recintos descritos no «Nevoeiro na cida­de» são de Lisboa. A casa da personagem principal é na Calçada dos Cavaleiros, o café é em frente da estação do Rossio. Aí os via, escrevendo.

 

Creio que O Dia Cinzento marca ainda outra vi­ragem. E, se mo permitem, importante. Durante a ocupação da França pelas tropas de Hitler, faltaram-nos os livros e os jornais (franceses) que ti­nham sido até aí o nosso alimento diário. Não tive remédio senão puxar pelo meu pouco inglês, de­senvolvê-lo o mais possível e isso me permitiu co­nhecer directamente as literaturas de língua inglesa (cheguei a traduzir A Pérola do Steinbeck) e des­cobrir a short story e a short short story, hoje tão pouco em moda, o diabo saberá porquê. A essa descoberta devo, em grande parte, tecnicamente fa­lando, O Dia Cinzento. E quem não tiver dado por isso nunca terá percebido nada do que se passou daí em diante no neo-realismo. Pelo menos, nos que chegavam: Cardoso Pires, por exemplo. Adeus ao descritivo-sentimentalismo de influência brasilei­ra. Outras coisas viriam.

 

No Não há morte nem princípio, que é o invés da short story, segui sempre a mesma via: escrever só sobre o que directamente se conhece, se viveu ou viu viver. Muito de perto. Não é também, por­tanto, um romance de camponeses ou operários, mas sobre a pequena-burguesia, sobre certos estra­tos dela, com problemas, contradições, misérias prateadas, que foram, sem que o soubesse ou pre­tendesse, como que uma premonição do que viria a acontecer depois do 25 de Abril. Algumas das suas longínquas causas, pelo menos.

 

O livro é de 69. E mostra bem como o «nouveau roman» me impressionou. Estas coisas não se ocultam. Eu próprio disse várias vezes que, depois de Robbe-Grillet, Butor, Duras, Sarraute não se podia voltar a escrever como antes deles. Mas quem deu pelo livro, excepto os jornalistas de ser­viço (um obrigado para eles)? Bem podem ter es­crito o que sobre esse romance escreveram um Jo­sé Cardoso Pires, um Urbano Tavares Rodrigues, uma Maria Teresa Horta, por exemplo. O público só vai lá com guisalhada. E essa não a permitia o texto.

 

Não sei se o romance é (será), na minha peque­na obra, uma excepção. Monólogo a duas vozes trouxe-me de novo à história mais ou menos curta, que permite analisar, estudar com tempo, iluminar intensamente, mas num campo restrito, pequenos casos do dia-a-dia, aparentemente insignificantes, que podem contudo ser os grandes casos da nossa vida nacional. Mas aí já não são os americanos ou os franceses que dão o tom (o diapasão?) da escri­ta. Quero crer que são os portugueses, às vezes de famílias bem distantes da minha. Um mal? Pensar em americano é que não é decerto um bem.

 

E o mesmo na poesia. Porque, se Poemas e, já menos, As Solicitações e Emboscadas devem muito como clima imagético aos espanhóis, O Riso Disso­nante a Eluard e Aragon, sobretudo a Tzara (esqueceram-se de dar por isso, apesar da epígrafe do livro), na Memória dum pintor desconhecido e em Terceira Idade é dum regresso a Camões e a Pes­soa que espontaneamente se trata. Como alguns vi­ram, mas não sei se exageradamente.

 

É necessário lembrar a minha contribuição para a formação e amadurecimento do neo-realismo? São dezenas (?) de artigos, crónicas, palestras. É sobretudo A Paleta e o Mundo, obra porventura mais citada que estudada e (nem todos o terão vis­to) essencialmente polémica. Ponto decisivo, creio, da chamada «polémica do neo-realismo».

 

Embora concebida muito antes, A Paleta e o Mundo começou a ser escrita em 52, «quando ao autor pareceu indispensável afirmar publicamente a sua completa discordância de certas teses sobre criação estética, função social da arte, realismo, que então se estavam generalizando com um furor dogmático assaz deturpador de todo o pensamento crítico que aparentemente as inspirava».16 Era o passo para lá de um mais que possível equívoco inicial. O realismo não podia ser e não seria, salvo em casos medíocres (que movimento os não tem?, chamava-lhes eu «escritores de letras gordas»), o que muitas penas burocratizadas e burocratizantes andavam a querer que fosse.

 

Deslocara-me quase de propósito a Paris para entrevistar pintores célebres de diferentes países, mas com a mesma posição política, pretendendo assim que, neste rincão dos deuses, onde o que vem lá de fora é outra loiça, se visse enfim o erro enorme. Os Gregos e os Troianos. Valeu a pena? A vida me ensinou que muito pouco vale a pena, mesmo se a alma nada tem de pequena. Sobre os Encontros em Paris, principalmente planeados para desautorizar o conceito de realismo expresso na pintura dos Fougeron e nos escritos daqueles que para ele o tinham empurrado (primeiro visado: Aragon, segundo, terceiro ou quarto: os Jean Mi-lhaud), foi possível um crítico meticuloso como o José-Augusto França escrever, de qualquer modo insinuar, que as minhas preferências iam para Fou­geron e Taslitsky!17 Pecados meus! Digo que «passo os olhos desolado pela grande tela» [home­nagem a André Houllier], evocando saudosamente «as obras pujantes do antigo Fougeron», expostas em 41, sob a ocupação alemã e contra ela, com Braque, Bonnard ou Walch, lembro-as desgostoso em face do que Fougeron passara a fazer, e supõem-me a apreciar e a apontar como exemplo aquilo mesmo que detestava e combatia. Elogio as antigas telas de Fougeron, expostas em 46, nas quais o artista conjugava «o colorido riquíssimo de Matisse e o expressionismo violento de Picasso», esse, sim, um caminho possível, louvo Bretanha e Italianas no mercado, contrapondo-as a Parisienses no mercado, de 47, ponto explosivo do chamado «escândalo Fougeron», e dizem-me ser este Fouge­ron que escolho. Digo até não ter Fougeron «con­seguido dar o valoroso e urgente passo em frente sem destruir as suas mais altas qualidades de pin­tor»18 e arrumam-me como seu panegirista. Que mal me terei explicado! Não sonhavam os meus críticos de então que triste e duramente reprovava que um político, Lucien Casanova para o caso, fizesse a ronda dos ateliês de pintores comunistas, para decidir se, sim ou não, as suas telas deveriam ser expostas!

 

Resumindo: preso por ter cão e preso por não ter. Ou seja: quem anda à chuva molha-se, não se fala mais nisso. Por enquanto.

 

Tenho de confessar que A Paleta foi excelen­temente recebida. Além da generosidade das refe­rências e do espontâneo interesse duma grande editorial espanhola19, mereceu em 62, por unani­midade, o Grande Prémio de Ensaio da Sociedade Portuguesa de Escritores.20 Os prémios não se ti­nham ainda banalizado. E tratava-se então de uma promoção exclusivamente cultural. Como acontecia também com o Prémio Camilo Castelo Branco (obras de ficção), a cujo júri quase sempre perten­ci. Digo-o sem desprimor para os tantos prémios de hoje. Não se leia mais do que aqui escrevo. Mas era outra a canção. Indiscutivelmente.

 

Enchia-se-nos a casa de amigos. Velhos e novos ­amigos. Com muita parra à mistura, é bem verda­de. Não há uvas sem parras. Juntos projectámos e organizámos, na mesma sala onde lavro este do­cumento para a posteridade (que não há), muita coisa que esforçadamente ergueu o punho contra a barbárie fascista. Se esta sala falasse, nunca mais se calava.

 

As conferências, por exemplo, do Grémio Alen­tejano, que assim se chamava, em 43, a Casa do Alentejo, foram aqui planeadas. Uma série de pa­lestras ilustradas com recitais de poesia e música (de música, estou dizendo), destinadas a um vasto público e aqui pensadas por amigos vários, entre os quais me ocorrem de momento a Francine Benoit, o Sidónio Muralha, o Alexandre Cabral, de cabelos à cão-d'água, risca ao meio, camisa azul-da-prússia e gravata amarela, jogava râguebi, bem bom. Co­mo era então difícil conseguir uma sala! E alugar um piano?

 

A primeira conferência, do Bento de Jesus Caraça — «Algumas reflexões sobre Arte»21 —, sala cheia, decorreu sem problemas de maior. Mas, na segunda (e última), já os mastins tinham acordado, tudo mudou de figura. Sala ainda mais cheia. Fala­va o Lopes Graça sobre música medieval e punha um novo disco para documentar o que dizia, quan­do, no silêncio momentâneo, se ouviu, lá das últi­mas filas, uma voz avinhada, toda escorropichante: «Vira o disco e toca o mesmo!»

 

Era o sinal. Os mercenários atiraram-se ao pú­blico como feras esfaimadas. Cães à solta. Confu­são. As coisas não foram, no entanto, assim tão fáceis para eles. Nós tínhamos, a toda a volta da sala, um cordão de operários da Carris, trazidos pe­lo Cabral, me parece, que trabalhava na empresa. De livre vontade ali estavam para o que desse e viesse. E o que veio foi uma sessão de brutal pan­cadaria. Brutal, não exagero. Os mastins excitavam-se a si mesmos, trepando a cadeiras para ber­rar: «Quem é que disse morra a Pátria?» E, dessas mesmas cadeiras se servindo como camartelos, ber­ravam: «Viva a Pátria! Viva Salazar!» Os corpos engalfinhavam-se nas salas, rebolavam pelas esca­das do Grémio Alentejano abaixo até à rua e, na rua, até à esquadra do Rossio. Apesar da indignação que tudo isto provocava, ainda nos mais calmos, Caraça maravilhava-se: como era possível haver ainda gente pronta a bater-se, e de tal modo, em defesa da cultura! Pedra branca para mim: foi no fim dessa refrega que conheci o Ludgero Pinto Basto, recém-chegado da prisão, em Angra.

 

E outras iniciativas, publicações, antologias, a criação do PEN Clube português22 — possibilidade de encontros à luz do dia —, palestras, recitais on­de houvesse um recinto praticável. Maior ou mais pequeno. Estou vendo, lá para Alcântara, uma ga­ragem da CUF, que era ou me parece hoje que era imensa, cheia de operários erguendo-se de chofre e aplaudindo poesias, entre as quais a minha «Elegia ao companheiro morto», declamada, com a alma toda, pela Maria Barroso. Saia preta, blusa muito branca, uma imagem do povo inconformado. O tempo passa.

 

«Convosco ou não, meu galope é em frente./ /Pertenço a outro mundo, a outra raça, a outra gente.// E andar! E andar!» Versos meus, de 42. Tendo ainda, como vêem, uma pontinha de in­fluência brasileira.

 

 

e quanto ao sal da vida

 

Falei de amigos. Haverá melhor na vida do que tê-los? Muitos? Uns partem de vez (eram amigos a prazo), outros andaram por longe, regressaram, convertidos à ideia de que não há como beber um copo juntos. Nem que seja de café. Só na desgraça se conhecem bem: sabedoria popular. Fi-los em to­da a parte. No sanatório, por exemplo.

 

No sanatório, onde, num daqueles dias infindá­veis, recebi, o mais inesperadamente que é possí­vel, uma carta do Joaquim Namorado a propor-me a inclusão do meu livro Poemas, que ele sabia pronto há muito, na colecção a que ele e outros tinham metido ombros e ia chamar-se «Novo Can­cioneiro». Êxito imprevisto. O volume, com uma gravura na capa do Manuel Ribeiro de Pavia, não chegou às livrarias. Vendeu-se rapidamente, de mão em mão, houve quem o passasse à máquina. Foi o segundo volume da colecção, que começara, com Terra, do Fernando Namora, também em 41.

 

Fui e sou amigo de um bom punhado de gente. E, todavia (os absurdos da vida!), talvez ninguém tenha cortado tanto relações como eu. Chego a perguntar-me, descontente comigo, se chegará para o Guinness...

 

Foi-me sempre difícil suportar, sem corte radi­cal, a mentira, a prepotência, a traiçãozeca. Ado­lescência retardada. Como se um corte de relações pudesse excluir da vida essas misérias pegajosas. Arrependido? Em grande parte dos casos, realmen­te não. Mal que não se tem em frente do nariz sente-se menos, não cheira. Noutros, hesito. No fundo, as pessoas mudam, eu próprio terei mudado alguma coisa. Talvez hoje pudesse conviver sem custo, bem pelo contrário, com gente a que não fa­lo por antigos excessos de rigor. Certas arranhade­las, de que simulei não dar-me conta na altura própria (necessidades de estratégia de outra or­dem), comprovam-me que sim.

 

Porque ofensa, ofensa mesmo, e pública, só me lembro de três casos, biliosa de mais num, desra-zoada de mais nos outros, para que fale aqui neles. Merecem só silêncio. Além de que até isso o tem­po vai gastando um pouco.

 

 

um novo amor

 

Mas durante a tal doença — era o que ia a dizer há pouco — uma nova perturbação me bateu à porta sem cerimónias e se instalou de cadeira.

 

Dos amigos que mais me acompanharam nesses anos difíceis, três havia que falavam muito de arte, particularmente de pintura. Eu ouvia-os, feliz. Fe­liz, via e revia os álbuns que me traziam para me ajudarem a dar menos pelo tempo, esses meses passando sobre os meses, os anos sobre os anos, radiografias, saídas periódicas para fazer o pneumo­tórax até quando? Via esses álbuns e sentia alguma coisa reacordar em mim.

 

Lá para trás. Na minha primeira juventude. Quando almoçava e jantava em casa do Jorge Do­mingues, meu antigo companheiro de carteira no liceu. O mesmo com que fizera o Prisma, co-dirigira a Gleba, co-dirigira O Diabo. A vida não era fácil lá em casa. A mãe bordava a ouro fardas de diplomata, estolas de padre, galhardetes, tentando eu estabelecer relações possíveis entre recepções de embaixadas, cerimónias litúrgicas, festas despor­tivas e aquela mulher, toda dobrada sobre o grande bastidor, muita's vezes noite dentro. O pouco que eu lhes dava pela comida era uma ajuda. Mas nun­ca viram em mim um comensal nem eu neles nenhuns donos de pensão. Ficava por lá com frequência para o serão, demorando o regresso à mi­nha casa sem ninguém, a conversar, a mãe bordan­do e a falar como uma gralha: a queda do Salazar, outras coisas assim. Mas certa vez alguma coisa me puxou para a varanda da saleta, roendo o meu cachimbo mal queimado (estava na infância da ar­te) e ali fiquei, com os olhos fixos na massa imensa dos telhados de Lisboa trepando para o Castelo, na rua lá em baixo, muito mal iluminada. Um quinto andar já não era nada mau para o efeito. Remoía o meu Antero: «Silêncio, escuridão e nada mais». Crise de solidão. Daquelas de apertar os gorgomi­los. Quando vem o Jorge lá de dentro, suspeitoso, e me põe a mão nc ombro: «Que é isso, pá? Nós cá estamos! Nós cá estamos!» Mas tão longe! Nem ele poderia imaginar de que distância me fala­va. E, então, sai-me esta, sem desfitar o escuro do horizonte muito acima dos últimos telhados: «Se eu pudesse pintar!»

 

Pintar? Surpresa dele e minha. Pintar o quê? Via cá dentro, se se pode dizer «ver», uma árvore disforme feita de sombra e de silêncio. Ou talvez nem fosse árvore, mas só ânsia sufocada, um dispa­rate surdo. O Jorge, jovial, sentindo a crise passar:

 

«Então por que não pintas, pá? Atira-te a isso, pinta!» Mas eu nunca pegara num pincel senão nos de aguarela, para as aguadas, nas aulas de de­senho no liceu, com resultados mais ou menos la­mentáveis. Nem dera sequer até aí muita atenção à pintura. Não podia ser isso.

 

A perturbação, porém, ficou. A apurar, como se diria em culinária, sub-repticiamente. Quanto tempo! E regressava agora. Mas sem drama. Só apelo indistinto e uma secreta vontade de arrancar. Meio consciente, não mais.

 

Um dos tais três amigos desenhava muito bem, era o Álvaro Cunhal, e falava-me, com o espírito insinuante que era o seu, de museus da Europa, tantos museus!, tantos artistas! Käthe Kolwitz, uma paixão que partilhei com ele. E mandámos fa­zer seis grades a um carpinteiro meu conhecido, três para cada um, para esticar nelas telas, para pintar. Tê-las-á usado? Eu, sim. E mal. Outro, o Huertas Lobo, que faleceu há pouco, era filho de pintor, conhecia a história da arte do princípio pa­ra o fim e do fim para o princípio e ofereceu-me a caixa de óleos do pai, prova inestimável de amiza­de, o que fora do pai era sagrado para ele. O ter­ceiro, que queria ele próprio ser pintor, trouxe-me todas as suas tintas e não descansou enquanto não me viu servir-me delas. E curioso o respeito e a curiosidade (a secreta cupidez) que uma caixa de tintas me inspirava. Até o cheiro, que delícia! E a que ele me trazia, mais para eu ver, estava cheia de bisnagas de cores desconhecidas. Mas eram de­le, está claro, não me atrevia a tocar nelas. Chama-va-se António Augusto de Oliveira (assinatura hieroglífica: 2 A A e um O) regressou à sua terra — Cabo Verde — a instâncias do pai, que o não via avançar no curso de Direito, onde em verdade nunca pusera os pés, e pouco mais soube dele se­não que não chegou a ser pintor. Mas era o mais teimoso. Vendo uma pequeníssima paisagem que eu ousara fazer com as tintas dele, disse-me, impa­ciente: «Deixe-se de diletantices, por favor. Pinte mesmo. A sério». Falava-me, encantado, de Gauguin (o que ele quereria ser, Cabo Verde, o inte­rior, um novo Taiti, eu bem o entendia) e de ou­tros autodidactas da aventura criadora. Chegava a ofender-se: «Está à espera de quê?»

 

Eram os três, enfim, o diabo em pessoa(s).

 

E falta aqui um outro nome. De alguém que nunca vira. Todo entregue à divulgação, num afã de missionário, esse meu desconhecido, Agostinho da Silva de seu nome, publicava cadernos sobre ca­dernos (preço: um escudo!) sob o título genérico de Iniciação. Tarefa modesta e gigantesca. Muita e muita gente aprendeu nesses cadernos a amar as maravilhas deste mundo. E foi graças a um deles que soube da existência dum grande e estranhíssi­mo pintor que logo me interessou, me atraiu, me apaixonou. Sobre o qual muito li, escrevi, falei. Chamava-se Vicente Van Gogh, o homem da ore­lha cortada. Foi meu «mestre» e meu assunto pre­dilecto durante anos.

 

Numa página de Diário encontro isto contra possíveis entraves, certamente os houve: «Pintarei, pintarei, queiram ou não, possa eu ou não. É di­recto, é autêntico, é profundo, é espontâneo. E é como que gostar muito de alguém. Costumo dizer que sou um romancista que não escreve romances. Mais verdade será talvez dizer que sou pintor, che­gue ou não ao fim dos quadros. Não é o quadro verdadeiramente que me interessa, mas pintar». Voam as horas, a busca continua. Fico espantado quando ouço: «São horas de jantar!»

 

Se muito tenho pintado — períodos houve em que não fiz mais nada —, quanto tenho destruído? Quase tudo. O que nem sempre é fácil. Exige certa força de vontade, verdadeiro desprendimento estan­do preso, mais esforço e paciência do que rasgar o que se escreve. Mas, quando não se chega ao que se quer (alguma vez se chega ao que se quer?), agarrar num pano bem embebido em aguarrás e esfregar, esfregar até raspar, que alívio e que liber­tação!

 

E para este género de atitudes que se inventou um dia a palavra «estupidez», bem sei. Mas é mal sem remédio. Aliás, nunca se consegue apagar tu­do. Da própria obra destruída, do que nela resiste (um dia nos arrepelaremos por não podermos re­cuperá-la), uma outra está nascendo logo, inespera­da, irresistível, chegue ou não ao fim, já tanto faz.

 

Naturezas mortas (a minha escola inicial), mui­tas paisagens com casas de camponesas ou sem elas, cenas de interior (mulheres na cozinha, a lavar a louça, a esfregar o chão), maternidades des­calças, corticeiros fazendo «quadros», camponeses e operários reunidos à porta fechada (última ver­são: Interior, de 47, exposto em 48), serradores, aqueles mesmos que apareceram no meu conto «Uma Tarde de Agosto» de O Dia Cinzento e ou­tros contos. Quanto daria para vê-los agora. Ainda que fosse para destruí-los outra vez.

 

Claro que pintar me havia de levar ao estudo dos materiais — eu próprio fabricava as minhas tintas e telas quando não tinha dinheiro para comprá-las — e aos tantos problemas da pintura. Que os não há exclusivamente teóricos. Não sei como nunca se gastaram, de tanto as consultar, as páginas de respeitáveis manuais como o excelente O Material do Artista e o seu Uso na Pintura /  com notas sobre as técnicas dos velhos mestres, do Max Doerner.

 

Filosofar sobre pintura sem ter passado por aí, que inconsciência!

 

E lá vinha, era uma festa, o dr. Avelino Cunhal, esquecido do cabelo todo branco (em vão, com insistência, a mulher lho lembrava), feliz co­mo um menino, passar comigo as tardes de Do­mingo. Pendurava o solene chapéu no bengaleiro e, depois de muitas cerimónias («Não vale a pena, deixe lá, não vale a pena»), despia o seu casaco, desfazia o laço irrepreensível, chegava a consentir em pôr um avental. Radiante. E punha-se também aplicadamente, a misturar os pigmentos com o óleo («Já estará bem?», «Um pouco mais, mas cuidado, não de mais»), a deitar-lhes a gota de água para fa­zer a emulsão, a meter o produto em bisnagões de estanho que eu arranjava não sei onde. Tínhamos tinta para uns tempos.

 

E logo os problemas da pintura se entrosaram com os da poesia, os da ficção, os da própria teoria estética. Os da política, enfim.

 

O Marx é que teria razão: «Numa sociedade co­munista não haverá pintores, mas homens que, entre outras coisas, pintam». Esperanças cá para o rapaz, que mais amador que ele não haveria. Onde estava, porém, a sociedade comunista? Nem eu compreendia muito bem aquele «entre outras coi­sas». A pintura, como tudo, exigia uma especiali­zação cada vez maior e, a bem dizer, a tempo intei­ro. Esse o meu desespero.

 

Não eram sinais de paz. Lembro-me bem do sor­riso dum amigo (amigo mesmo) que, não levando muito a sério as minhas novas andanças, me ouviu um dia esta estranha asserção: «Pintar é mais ope­rário que escrever». A que porta batia! «Por causa do fato-macaco?» Cáustico, o cavalheiro. «Por que não escreves então de fato-macaco?» Eu, silêncio, todo ofendido por dentro. Há coisas em que é inú­til insistir. Um círculo de incomunicabilidade nos separa mesmo das pessoas mais ou menos íntimas. Tentar quebrá-lo não parece aconselhável. Todos temos coisas desconfortáveis lá no fundo. Lá no fundo convém que continuem. A confidência tem limites. E melhor não mexer muito.

 

A partir dessa altura, seria um homem dividido, apesar duma unidade subjacente, inalterada, inalte­rável, que só eu podia ver. Um homem incapaz de optar entre tantas solicitações (e emboscadas...) iguais na exigência. Mas será bom lembrar que já me desmenti em público: «Mais duma vez respon­di a entrevistadores que resolvo a minha grande di­ficuldade dispersiva fazendo tudo ao mesmo tempo, um pouco de cada coisa. E disse-o com convicção, vá-se lá saber porquê. Vejo agora que menti. Na verdade, não faço tudo sempre, era impossível. Se escrevo poesia, por exemplo, sem que escolha quando, é só poesia que 'escrevivo'. Como havia de ser de outra maneira? Idem com a ficção. Idem com a pintura.

 

«E, entretanto, absorção. Completa. Em fase de 'escreviver' (ou de pintar), confesso que nada exis­te para mim além do que me ocupa. Finjo que leio. Finjo que ouço».23 Por isso julgo sempre, en­quanto me entrego a um tipo de trabalho, que to­dos os outros acabaram para mim. Mas já se viu que assim não é. Tenhamos esperança em em­briões que esperam. Não sei como nem onde.

 

Como eu gostaria de saber explicar (-me) as ocul­tas razões que, a partir de 63, só me deixam (até quando?) fazer pintura abstracta? Uma nota, escri­ta em Fevereiro de 83 (em todo o caso, muito tar­de) diz mais ou menos como as coisas se passam: «Parto sempre para a tela com uma grande convicção. Melhor seria dizer esperança. E a sede — a sede mesmo — de pintar que me leva a abandonar tudo e a agarrar nos pincéis. Bato com eles na tela como quem bate em alguém, que é o mundo, o destino, a grande barreira que me impede de. Não digo às cegas porque um olho crítico de mim mes­mo está constantemente vigilante e troça dos gran­des ímpetos 'inspirados'. De qualquer modo, co­meço com violência e quase com certeza, caçador que sente a caça na ponta da espingarda. Rápido, percorro a tela de canto a canto, insisto mais no la­do esquerdo ou no direito, em cima, em baixo, ra­ramente no centro. Quem insiste sempre alcança. É um corpo-a-corpo desaustinado, cantante, deli­cioso.

 

«Mas, pouco a pouco, a humildade vem. A pressa desaparece. Ponho-me a olhar desconfiado, embora sem parar (seria o mais difícil de tudo nes­se momento, para não dizer impossível), procuro, tento descobrir, porque, na grande selva que entre­tanto se foi criando à minha frente, deve haver um caminho, tem de haver um caminho e, pobre de mim, não o encontro. É possível que esteja já a en­cobri-lo com pinceladas firmes, certeiras (que me agradam), mas quem sabe se fora do lugar e da al­tura em que deveria usá-las.

 

«Infelizmente, é já tarde de mais para voltar atrás, para desistir. Continuo. Mas agora só a tro­te, com algum peso na consciência (sem saber de quê), a mão ainda ágil. Vão surgindo abertas na paisagem, confusões prometedoras, acordes e disso­nâncias imprevistas, promessas. Que apanho no ar com algum medo de perdê-las. Que exploro de mais. Que estrago».

 

Há sempre quem me pergunte, porque gosta do que faço ou talvez nem seja isso, são hábitos, con­venções estabelecidas, delicadezas sociais: «Para quando, enfim, essa exposição?» Faço por sorrir e mordo-me por dentro: mais um que não entende nada.

 

 

uma ponta do véu

 

Embora circunscrita ao sector cultural, assim a quis — propor, coordenar, impulsionar, ligar a zo­na clandestina à zona legal e vice-versa —, a mi­nha actividade política não deixava de crescer. Não era raro levar-me o tempo todo. Porque havia as reuniões (muitas e intermináveis), a sua prepara­ção, a distribuição da imprensa, outras tarefas. Sempre recusei ser promovido no mundo subterrâ­neo, como, depois do 25 de Abril, recusaria por duas vezes ser ministro. Eu não era, nunca fora nem seria um político. Era apenas um artista (bom ou mau é outro assunto) que circunstâncias histó­ricas precisas obrigavam a actuar politicamente. Queria-me soldado só. Mas que difícil fazer enten­der isto aos que nasceram para subir, mesmo que fiquem pelo sonho, de soldado a general!

 

Erguia-me no meio da noite e olhava, angustia­do, as mesas de trabalho: a secretária, o estirador.
Não tinha tempo. O ensino, a poesia, a ficção, o ensaio, a malfadada crítica, a pintura. Tudo isto chegaria bem para encher uma vida. Ou não? So­bretudo com a demora e a minúcia que me habi­tuara a pôr em tudo e fizera de mim um animal pouco rentável. Não tinha tempo. Ninguém enten­deria isto? Ninguém entenderia que o duelo não era entre o prazer e o dever? Que era entre a vida e a morte?

 

Pertenci ao Partido (escusado dizer qual) até Maio de 1952. E dele resolvi sair por não dispor do tempo indispensável para o que mais na vida me interessava (a corda quebrara) e por outras ra­zões, naturalmente. De ordem teórica, de ordem prática. Caíra, enfim, no burguesíssimo orgulho de querer ver mais e melhor do que a direcção duma organização que pensava «por milhões de cére­bros». Toma lá. Com toda a seriedade. E eu, já muito corroído pelo micróbio decadente: pensar por? nem sequer a rogo de?

 

Mas não era sequer o que actualmente se chama «um dissidente». Anti-stalinista, sim, e desde sempre, muito embora sem grande consciência dis­so. Ainda nem existia a palavra «stalinismo». Vinham longe o XX Congresso, as grandes revela­ções (confirmações), as primeiras tentativas de «de­gelo». Relendo documentos dessa altura, vejo, com pasmo, que respondia a certas objecções feitas em nome do pensamento de Stáline com frases do mesmíssimo Stáline... Estávamos todos muito ver­des, eu também. O que só será compreendido por quem puder reconstituir a época com a minúcia e a precisão indispensáveis.

 

Tudo se complicava muito porque nós (mas quais de nós?, quantos de nós?) sentíamos, como um espinho na carne, o dever de lutar pela felici­dade dos outros. Não o fazer era uma espécie de pecado. Não sabíamos viver com esse peso, essa hi­pótese sequer, na consciência. Mas lutar seria obe­decer de olhos fechados a uma orientação que (e assim me parecia mais e mais) não levaria a lado algum, à transformação dos homens certamente não? E o papel do intelectual (como o de qualquer outro militante) poderia limitar-se a subir e descer escadas com o único objectivo de subir e descer es­cadas? Não seria sua estrita obrigação (não só dele, mas sobretudo dele) esclarecer, esclarecer, esclare­cer os que só o não são, à partida, por defeituosa, criminosa organização da sociedade? Uns, como eu, pensavam (o Cochofel, o Carlos de Oliveira, o Lopes Graça, não só estes) que a militância do ar­tista deveria ser sobretudo (sobretudo, não só) no campo cultural. E que ela de modo nenhum deve­ria impedir o artista de dedicar-se ao conhecimento profundo da linguagem específica da arte e seus problemas. Que não havia arte revolucionária sem começar por ser arte. Que a desejada acção da arte junto do público, além de arte ser, exigia um míni­mo de preparação da parte deste, a incluir nas tare­fas políticas dos intelectuais. Que — princípio e fim de tudo — considerar a chamada «forma» e o chamado «conteúdo» elementos (metafisicamente) separáveis revelava, não um conceito marxista, mas um «mecanicismo pré-dialéctico», como já lhe chamara, sem que qualquer de nós o pudesse então saber, o insuspeito Mikail Bakhtine. Outros (muito mais poderosos na organização, deliberando o que pensar, desde o vértice da pirâmide a toda a base) defendiam, e com que intransigência!, precisamen­te o contrário.

 

Coisas graves me pareciam que a crítica de bai­xo para cima (a inversa nunca esteve em causa), embora muito apregoada, nunca fosse possível exercê-la, que a repetição de palavras de ordem até ao atordoamento, mesmo no interior, substituísse uma cultura cientificamente indagadora, que qual­quer discordância de fundo obtivesse invariavel­mente como resposta: «terás razão, mas não é este o momento de». Quando a cultura não é nunca para amanhã, é sempre para já. O futuro o diria, o presente o está dizendo.

 

Por que não se esquecem certas coisas? Ao pas­sar a simples «simpatizante» (era tudo afinal o que então queria e, a custo, consegui), um «amigo» — entre aspas a partir desse preciso instante — disse-me de olhinhos fixos e brilhantes: «Nunca mais farás nada». Mau agoiro para quem queria fa­zer tanto.

 

Uma ameaça? Levei tempo a entender que sim.

 

Muitos meses depois, já em 53, liberto pois de qualquer disciplina partidária, fiz uma série de oito conferências na Associação de Estudantes da Facul­dade de Ciências de Lisboa, por iniciativa da sua secção cultural24 .

 

Público crescente. Pois sou infor­mado de que, enquanto falava, naquele silêncio ávi­do e colaborante que é o prémio maior para qual­quer orador, se bichanava na sala a deitar por fora: «Um tipo bestial. E pena como se portou quando esteve preso. Meteu muita gente dentro». Era in­fantil. Quem me conhecia, e muitos me conhe­ciam, sabia perfeitamente que eu nunca estivera preso.

 

A verdade é que nenhuma organização tem cul­pa dos seus doentes nem até dos seus períodos de crise sobretudo com dirigentes importantes na ca­deia. O que não obsta a que a bola de neve comece a tentar formar-se.

 

Não me passou despercebido, já três anos anda­dos e o tosco processo concluído, o tipo de objec­ções que o Mário Sacramento e o meu velho ami­go Óscar Lopes acharam por bem fazer — só eles e só então — a algumas teses expostas n' A Paleta e o Mundo, não se esquecendo ambos de informar os respectivos públicos de que o autor mudara de doutrina e que, embora muito isto e mais aquilo, abandonara «o caminho comum».25 Quanto a «ca­minho comum», na acepção que lhe davam, era já mais que evidente. Mas lá quanto a doutrina...

 

Havia muita coisa por detrás, que talvez nem eles conhecessem. Pormenores de importância, ou­so pensar. E, porque a história das ideias, dos paí­ses, dos partidos, finalmente das pessoas, também de pormenores se faz, espero ainda contar os que comigo se prendem (se prenderam) quando tiver espaço para tanto.26 Não tem pressa. E talvez — é a minha vez de o pensar — não seja o melhor mo­mento para. Resta saber se alguma vez o será.

 

O tempo foi ensinando muita coisa a quase toda a gente. Mesmo a alguns que não sabem que eu sei que. É melhor mudar de assunto. De qualquer modo, as propostas, anteriores e posteriores ao 25 de Abril, para «rever o meu caso», nunca me dis­pus, naturalmente, a aceitá-las. Sem alegria, desejo que se saiba. Sem ponta de vaidade, quer queiram crer, quer não. Se os tais olhinhos fixos e brilhan­tes não são coisa que se esqueça (nunca mais), ou­tro apelo permanece, irrecusável, desde sempre, muito provavelmente para sempre. Ronca mugindo roucamente no espesso nevoeiro. Sem se saber on­de o farol estará. Se existirá.

 

Via tudo agora mais de longe e, se me dão li­cença, ainda mais de cima. Ou seja — e assim vol­tamos ao ponto de partida... —, o tal orgulho, bur­guês ou não burguês (pensar-se-á ainda assim?) que me faz ter o inferno garantido.

 

Disse um dia a um jornal que os erros dos que estão mais próximos dos meus ideais, mesmo só em teoria,27 nunca me farão cair nos braços dos inimigos desses mesmos ideais. Disse-o então, di-go-o agora. Amanhã a mesma coisa. Espero.

 

 

proibido estacionar

 

E a glória? Essa miragem que tira o sono a tan­ta gente?

 

Manda-me a prudência calar o que penso da gló­ria e, muito principalmente, do que tantos fazem para atingi-la. Lá viria o «estão verdes». Fatalmen­te. E sei lá se com razão. Nunca a gente se conhe­ce bem até ao fundo.

 

Direi só, serrazinento, que a acho dama engana­dora e tanto mais na época das grandes montagens publicitárias, com poderosas ligações multinacio­nais, tudo o que vem é ganho, etc. e tal. Uma fa­mosa escritora (não só) policial pensa acertadamen­te que «talvez para um escritor muita da sua sorte venha do facto de ter a publicidade certa no mo­mento certo». Publicidade. A explicação de (quase) tudo. Num livrinho que me interessou bastante, sobre a fabricação (será o termo exacto) de contos e romances, não forçosamente policiais, a mesma autora emprega com sintomática frequência o ver­bo ou a ideia de «vender» onde até agora se tem dito, por exemplo, «agradar»: «para conseguir ven­der...», «encontrar um mercado para isto», «uma história que se venderá», «um livro é tanto mais facilmente vendido para televisão e cinema, se...», se «se pretende um determinado mercado...» 28

 

Pobre do livro transformado em vistoso objecto de consumo. Pobres de todos nós. «Já leste?», «Não, mas tenho lá para ler. Parece que é muito bom». E as edições saindo, tanto melhor assim, e as traduções também (certos agentes são duma criatividade de deixar a boca aberta), e Portugal transformando-se, que me dizem a isto?, num vi­veiro de criadores com manifesta surpresa da Euro­pa e arredores. Um quinto império no papo. Ape­sar da língua aos tropeções, sob vários aspectos, não se fala agora nisso, quem cá ficar verá. Se tiver olhos para ver e se os quiser usar.29

 

Talvez não muito a propósito (mas eu quero crer que sim), dou por mim a pensar no jantar em que me foi entregue, há um quarto de século (voa o tempo e nós com ele), o Grande Prémio de En­saio. Havia tanta gente — apesar do silêncio da TV, da rádio, da maior parte dos jornais — que muita se viu obrigada a retirar-se por não caber na sala. A corrida aos Correios, ao telegrama. E confronto-o com a sessão de entrega do Prémio de Poesia do Centro Português da Associação Interna­cional dos Críticos Literários, em 82,30 já, portan­to, nestes nossos tempos áureos. Quinze pessoas na sala, contei-as pelos dedos. O que, dividido com o 0'Neill (o Prémio foi-nos atribuído ex-aequo), dava sete pessoas e meia para ele e sete e meia pa­ra mim. Nada mau, atendendo à falta de bebidas e outras falhas de encenação.

 

Haverá algum mistério em tudo isto, quero crer. Qualquer tecnocrata mo saberia explicar rapi­damente, com ou sem computador. Mas, obrigado, é melhor não.

 

Afinal o pior da tal sessão das quinze pessoas contadas pelos meus dedos foi o notável discurso da Maria da Glória Padrão sobre a poesia do O'Neill e o excelente, vivíssimo improviso da Ma­ria Alzira Seixo sobre a minha terem sido ouvidos por tão reduzido público, por melhor que este fos­se. As coisas são como são. Ou como as fazem. Ponto final, parágrafo.

 

E esta minha tendência agora para o conto, a história curta ou pouco longa, para o quadro de pequenas dimensões, para o que exige um trabalho enorme mas que não se vê, minúcia, depuração, despojamento, gradações e omissões voluntárias, dificilmente conseguidas, num país ou numa época em que se franze o nariz à música de câmara ou ao quadro de cavalete e só se aprecia a avalanche, a corrida de fundo, sem tempo para atender a porme­nores de tratamento de matéria, mesmo que não se leia o calhamaço até ao fim?31 Na minúcia do tecer é que está o prazer. Ou estava. Agora entendo muito bem (e agradeço a desoras) os reparos de dois críticos sobre pinturas minhas há trinta e quatro anos. Surpreendia-se um com certa pobreza de matéria de dado quadro. Tinha razão. Lamenta­va o outro (mas com esperança) que eu não hou­vesse descoberto ainda a arte e o prazer de passar os pincéis, em transparência, sobre outras pincela­das. Tinha mais razão ainda.

 

Ninguém imaginará (senão os do mesmo ofício e com tineta igual) o trabalho que sempre me deu o mais pequeno escrito. Chega a ser doentio, con­venho. Creio que a minha filha mo critica sem que me diga nada. E não só ela. Impossível libertar-me das exigências do ritmo da frase, integrado num ritmo mais vasto, o do parágrafo (real ou dissimu­lado) e noutro, mais vasto ainda, o da página intei­ra. O ritmo, não só (não bem) sequência ordenada de movimentos lentos e rápidos por uma alternân­cia do agudo e do grave, como queria Platão, mas dinâmica interna da frase de tal modo fixada que a pronúncia facilmente flua, sem choques nem atro­pelos, conservando contudo alternâncias e surpresas que dão a vida ao discurso e o personalizam. As vezes tudo se resolve com a deslocação duma palavra, dum sintagma, é um jogo vulgar, qual­quer principiante se desembaraça dele. Mas, ou­tras, fia mais fino. Tem de se ir à pesca de palavras com um número de sílabas diferente, a mesma ou outra acentuação, pois até isso conta. Sinónimos, sim, recurso pobre. Mais vale desistir. Mas desistir do que tanto põe à prova a nossa capacidade de?

 

Nunca nada está bem. Nunca é ainda aquilo. Acabo por entregar os originais contrariado, desi­ludido comigo. O detestável perfeccionismo, enfim. Vítor Hugo queria ser Chateaubriand ou nada. Mas tinha dezassete anos...

 

E «sempre» não é bem verdade. No princípio, a mão corria sem que eu pensasse nela, saía aquele caudal de «críticas», artigos que agradavam muito a uns e nada a outros, claro. Ir na crista da onda. Que inveja desses anos (só certezas!) e que cons­trangimento, quando, «à procura do tempo perdi­do», preciso de reler um ou outro desses lindos produtos do feliz açodamento juvenil! Sei bem (agora) que não se deve ter a pretensão de dizer tu­do. Não se pode dizer tudo. Ninguém sabe dizer tudo. Mas como pôr de lado a teimosa ambição de dizer, ao menos, o essencial? E rio-me de mim mesmo (não se perde tão depressa a lucidez) por causa deste «ao menos»...

 

Grande frequentador de cafés (quando os havia, e neles muito escrevi, há épocas, gostos, preferên­cias que mudam), nunca frequentei, contudo, os centros oficiosos de convívio de artistas e escrito­res, incluindo jornalistas. Como a célebre «Brasi­leira» do Chiado, paraíso de muitos, onde também os pides iam tomar a sua bica nos intervalos dos interrogatórios ali mesmo a dois passos, na Antó­nio Maria Cardoso. Chegava a haver, parece, quem entrasse, risonho e distraído, estendesse a mão pe­las mesas à volta, «boa tarde!, boa tarde!» e nem via que era o Seixas. Muito menos frequentei, já homem feito, meios de boémia artística ou faz de conta que sim. E mau. Isto cria uma espécie de cortina de gelo à nossa volta, um quase mas quem é este?, de onde vem?, com resultados pouco dese­jáveis nas notícias, nos artigos, cá estamos nós, nas vendas.

 

A minha longa doença nos começos da vida, a actividade clandestina, sempre embora na legalida­de, o muito trabalho sempre, tudo isso deixa marca e deve ser responsável de um estilo de vida que há--de parecer meio monástico e muito pouco agradará aos nadadores de aquário. Mas ouriço, eu?
Depois do 25 de Abril, com a euforia geral e a minha em particular (como era bom falar com toda a gente em qualquer parte!, ver que afinai isso é possível!), voltei a dar-me mais, a dar-me todo: ar­tigos, entrevistas, discursos, reuniões, frenéticos trabalhos de organização e mobilização na escola, no Ministério, até na RTP, essa cabeça perigosa que também pensa por «milhões de cérebros». Per­tenci até, embora por pouco tempo, na excelente companhia dos profs. Torre de Assunção e Ário de Azevedo, à Comissão de Saneamento do Minis­tério da Educação. Não há razão para ocultá-lo. Apesar do que diz uma linguinha que anda por aí escorrendo baba e devia ser cortada. Pedira-me um velho amigo, então ministro, o Vitorino Magalhães Godinho, que aceitasse a espinhosa e trabalhosa missão. E a verdade é que alguém teria de dispor--se a aceitar certas tarefas, por mais ingratas e difí­ceis. Ou a Revolução se defendia, ou nunca chega­ria a sê-lo. Como não chegou. Mas pouco ali mais fiz do que arrumar a casa, que encontrei em peri­goso desalinho. Pelo menos, nunca mais ninguém levou processos para casa nem lhe deu tratamento ao sabor de preferências pessoais ou partidárias. Mal verifiquei, porém, ser indispensável alterar uma lei que castigava os pequenos (reles informa­dores, outros que tais) e protegia os grandes res­ponsáveis e que o Conselho de Ministros nem que­ria ouvir falar em tal, tanto eu como o companhei­ro exemplar que era o prof. Torre de Assunção, apresentámos o nosso pedido de demissão ao Mi­nistro, que entretanto mudara.

 

Luta tenaz, tão sincera como ingénua: os abu­tres estavam lá, na sombra ainda. Uma luta, como sempre, assente em dois pontos principais: cultura e unidade. Não me chegara a lição da vida inteira. Lutava contra moinhos, contra o vento.

 

Terei de dizer uma vez mais, hei-de dizê-lo sempre, que nenhum partido de Esquerda percebeu (ou terá querido perceber), para além dos discur­sos, dos comícios, das entrevistas à Imprensa, não me interessa isso agora, que uma nação secular­mente mergulhada na mais completa ignorância das suas próprias carências (que não são só pão e casa, e mesmo para ter o pão, para ter a casa), exi­gia, antes de tudo, sabem o quê?, ensino. Ensino, no sentido mais vasto e profundo da palavra. Tão vasto e tão profundo que a tarefa imensa de pôr milhões a saber ler e escrever (mas que é ler?, mas que é escrever?) mais não seria que um ponto de partida. Em todas as idades. Em todos os recantos desta terra de milagres, crenças e crendices, de faz como vires fazer. Ensino para que se aprenda a ver com os próprios olhos, a intervir com as próprias mãos, a entender também que nunca é por acaso que se volta a falar, com redobrada insistência, nas suas glórias passadas — no largo Oceano ou nos palcos de revista —, como manda a receita dos bons tempos. Que os funâmbulos estão aí. À espe­ra. As ordens. Não é outra a sua profissão.

 

Se eu ainda fumasse. Carregava um cachimbo como os sabia carregar depois de tantos anos de experiência, com pressões diferentes consoante a fundura a que o tabaco vai ficando. Um desses de fornilho alto, boca estreita, boquilha bem compri­da, o fumo chega assim mais frio, mais leve, des­perta o pensamento, dá-lhe asas. Estou olhando à minha volta e em mim mesmo. Que é isto, rapa­zinho? Desconforto? Apreensão?

 

Caminhamos para onde? Para a destruição total, aqui e no Planeta inteiro? Ou, computadorizadamente, para um mundo inteiramente novo (novas linguagens, novos sentimentos) que não posso, e isso me desespera, prever sequer como será?

 

Desprezível, entretanto, me parece o sorriso fe­liz dos que, no meio da tempestade e das matas em chamas, fingem não dar por elas. Há os que igno­ram (a fome, a poluição, a droga, a sida, o trabalho de menores à vista de toda a gente, a subversão da democracia democraticamente feita por dentro em nome dela, a agressividade, a ameaça nuclear), há os que simulam ignorar. Em qualquer dos casos: desprezível. Nisto insisto. É preciso insistir. Um antiquíssimo espelho põe-se-me na frente: É preci­so? Essa é boa! É preciso? Ou serás mesmo incu­rável?

 

E, no entanto, tímidas esperanças se aproximam (sou incurável, sim, não deixarei de sê-lo!): certos aspectos do poder local, um alegre formigar de ac­tividades culturais de jovens que se alarga, de den­tro, por esse país fora e que era impossível antes, não esquecer: e que era impossível antes.

 

Tem de existir um grande desencontro entre o que escrevo e o que escrevem muitos dos meus contemporâneos. Gosto pouco, em geral, do que eles escrevem. Eles não devem gostar nada do que escrevo. Estamos quites, assim. Boa viagem. Sem ressentimentos.

 

Considero cada vez mais indispensável um certo distanciamento dos factos e das pessoas que serão, com grandes alterações, as minhas personagens: mesmo «eu», quero-me «ele». Mas só me interes­sa de verdade o que está perto. O que eu próprio vejo ou vi e, a partir disso, imagino. Quase me di­verte pensar que haverá quem diga: um homem de vistas curtas. Se é falso, tanto faz. Se é verdade, que remédio?

 

A História mais ou menos histórica (andam a pô-la em moda), a lenda mais ou menos fantasista, os realismos variadamente adjectivados buscando todas as saídas para não serem realismo, nada te­nho a ver com eles. Como autor. Como leitor, lá muito de onde em onde, por causa dos casos ex­cepcionais, já se sabe que os há. Aliás, quando leio, leio muita coisa ao mesmo tempo por esta ra­zão ou por aquela, por acaso. Nem sempre até ao fim. Já não há daqueles livros em que o leitor se enfronhava até final, esquecendo os outros todos. Para mim. É curial acrescentar. E, além de tudo is­so, não me considero tanto, fiquem lá sabendo, que me contente com escrever só para mim mes­mo (falo de estilo, de grau de ambiguidade) ou para mais meia dúzia como eu. Nunca serei capaz de trabalhar «como o pássaro canta». Trata-se de ou­tra coisa. Bem mais ambiciosa. De puxar o leitor até ao fim sem o deixar parar e — ambição maior ainda, se é possível — sem que ele me veja. Ideal de escrita pois: agir, sendo invisível.

 

E agora, para acabar (é um truque de conferen­te, ainda falta um pouco mais), uma confissão des­pudorada, como todas as confissões o devem ser: gosto bastante de algumas coisas que escrevi. Quem esperava uma destas? Embora o que escrevi lá para trás, sobretudo de índole teórica afirmativa, me cause um mal-estar indefinível, uma vontade, que não é bem de rasgar ou renegar, de vomitar, mas de tirar tudo de onde está para voltar a pô-lo lá de outra maneira. E, quanto ao resto — o que me agrada — desgraçadamente o sinto como um começo só. Tudo está para vir. Nada virá. Eu sei.

 

Ouço o grande silêncio. Vejo-o. Toco-lhe quase. Estou sentado, no meio da cozinha lajeada, olhan­do lá para fora pela janela alta e estreita. A mani­festação (com tiros!) em S. Pedro de Alcântara, éramos todos estudantes. Encontros nocturnos na cerca da Faculdade de Ciências, falava-se em voz baixa, muito baixa, com o portão fechado, quem é que tinha a chave? Um grito alegre na praia da Ericeira, alguém correndo, um abraço tão forte que nos deita ao chão, é o Ramos da Costa muito no­vo, que eu julgava ainda preso, «saí ontem!». E o Zé Gomes, o Carlos, o Cochofel, ainda antes da tertúlia do «Bocage». E as massas transbordantes do dia da Vitória: bandeirinhas dos aliados nas ruas, nas varandas, nas lapelas, excepto a da URSS, é claro, e por isso se gritava: «Todas! To­das! Todas!» E novamente a marcha cautelosa sob as águas. Sempre outra vez a marcha cautelosa sob as águas. Sacões de esperança: o Norton, o «Santa Maria» navegando envolto em lenda, apelando em vão ao mundo inteiro, o Humberto Delgado antes de lhe arrancarem as estrelas. Anos e anos de cri­me, digamos o que dissermos, consentido. Até ao tal amanhecer: Aqui, posto de comando das Forças Armadas. Escancarado o portão de Caxias. O regresso dos exilados perante mares de gente gritante e confiante, até parecia um povo. O primeiro 1.° de Maio em liberdade, nas ruas, nas janelas, nos andaimes dos prédios em construção. Seria mesmo um povo?

 

E outros momentos. Soltos. Deslumbrantes na opaca escuridão do que não volta mais. Cada um terá os seus, a sua história privada, a sua respira­ção. A última reunião da Comissão de Escritores do MUD, a que tinha pertencido toda a gente (fal­tavam às vezes cadeiras) e a que, por fim, já só compareciam, inutilmente renitentes, três pessoas: a Manuela Porto, o Flausino Torres, eu. Que coor­denava o sector desde a própria ideia de o formar. Como o dos artistas (arquitectos, pintores, esculto­res, desenhadores, fotógrafos, publicitários) que, a partir de 46, fizeram juntos as suas Exposições num clima de entusiasmo e unidade como nunca houvera no país nem sei se, exactamente assim, te­rá voltado a haver.32

 

Momentos soltos lucilando na distância. O José Cardoso Pires a bater-me à porta com o seu pri­meiro original. O Piteira a paginar comigo, em minha casa, à noite, a Gazeta musical e de todas as artes.

 

A Manuela Porto foi quem primeiro declamou a «Ode Marítima», como nunca mais ninguém faria. E, antes (ou depois?), a nossa poesia que mal ainda despontava, no velho Salão de O Século, com uma palestra introdutória do Armando Bacelar. Vejo-a a beijar, num pé, a minha filha então de meses: «Posso? E um milagre!» E, a seguir, na redacção da Eva, que ela chefiava e onde a vi pela última vez. Estava assente que eu passasse por lá para lhe dar a senha de contacto com o MUNAF, organiza­ção ilegal a que resolvera aderir. Era um prodígio de vontade e de coragem aquela mulher tão frágil, delicada, toda ela poesia. Mas tinha no gabinete, inesperadamente, alguém que não me devia ver, a directora da revista. Vem lá de dentro, à pressa, sorridente. Traz nas mãos as Cartas a um jovem poeta. Deixa a porta entreaberta, só o bastante para que a ouçam bem. «Desculpe não poder hoje rece­bê-lo. Está aqui o livro. Gostei muito». Mímica apressada a explicar porquê o livro e aquela con­versa. Dois dias depois suicidava-se.

 

E vejo o Flausino também, muito mais tarde, com o seu arcaboiço de camponês, grossa samarra de gola levantada, já a noite caíra, à porta da sua casa de Tondela, em pleno campo, com os braços estendidos e os olhos molhados: «Tu é que tinhas razão». Enquanto eu, durante o abraço demorado e apertado, retomava um convívio interrompido du­rante anos: «E era preciso ires tão longe?»

 

Regressara de Praga, depois da invasão. Passara por lá as passas do Algarve nas mãos de uma co­nhecida dirigente, dessas de «antes quebrar que torcer», que se deslocava em luxuosos automóveis de Estado, vivia em bons hotéis por lá e anda agora por aí, nos períodos eleitorais, a fazer a propa­ganda de tudo o que seja de Direita.

 

Exactamente a mesma. Quando, em 42, fiz a minha conferência na Universidade Popular sobre arte moderna, essa expressão acabada da «burgue­sia decadente», foi ela que comentou: «Que grande desilusão!» Mas não se referia à qualidade da con­ferência. A minha grande falha ideológica é que a deixara desolada...

 

Varrer o lixo. Sem descanso. Conservar o que nos foge por entre os dedos, como fumo.

 

O quê? Projectos? Mais projectos? Coço a cabeça, meio envergonhado. Um homem com esta idade! Terei tempo sequer para metade deles?

 

Vale-me então um espírito maligno, género anãozinho da floresta (outra vez a floresta...) que me pousa no ombro enquanto escrevo ou pinto e que me diz, gozão: «Inquietas-te porquê? Que falta é que tudo isso faz?» E, com esta, arruma-me de vez: «Estás convencido de teres estado sempre certo?»

 

A defesa, abro o meu irregularíssimo Diário num dia de 63, aí calhou, e leio-o como se a data fosse a de hoje: «Não queiras que cada página seja um monumento. Não queiras tudo. E o melhor ca­minho para não encontrares nada. Não te sintas esmagado pelos grandes nem condoído com a fa­lência dos que detestas ou desprezas ou apenas la­mentas. Escreve. Esquece tudo, tapa os ouvidos, mete-te bem na tua experiência, só na tua expe­riência. Grande ou pequena, é o que tens. Não de­sanimes, não desistas, não te perturbes com a indi­ferença dos outros, não te entusiasmes com os aplausos dos outros. Escreve! Escreve!».

 

Mário Dionísio

 

 

Notas:
1 Ver Mário Dionísio, «Da pequena à grande História». Jornal da Educação, N.°84. Lisboa, Agosto de 1985. voltar ao texto

2 As «Fichas» começaram a publicar-se em 21.2.42 («Ficha 1») e terminaram em 31.7.43, com a «Ficha 13-A», que prosseguia a polémica com João Pedro de Andrade, a qual se conclui na «Ficha 14», editada em volume por a Di­recção da Seara se ter recusado a publicá-la. Assuntos das «Fichas»: Pereira Gomes (primeiro artigo sobre Esteiros), Jor­ge Amado, Alves Redol, Sidónio Muralha, José Gomes Fer­reira (primeiro artigo sobre o poeta), importância da técnica na criação estética, defesa da arte moderna, etc. voltar ao texto

3 Jean Guéhenno, Sur le chemin des hommes. Grasset Paris, 1959, p.27. voltar ao texto

4 Na minha última lição, «Língua, Linguística e Técnicas de Expressão», pronunciada em 5.3.86, na Faculdade de Le­tras de Lisboa (Anfiteatro I, repleto de gente generosa), depois das palavras de Maria de Lourdes Belchior, que ali falava co­mo que «por procuração», segundo disse, devido à morte ain­da recente de Jacinto do Prado Coelho. Deste modo aludia ao facto de ter sido aquele Professor que, com Luís Lindley Cin­tra, mais se empenhou no meu ingresso na Faculdade, o que só viria a acontecer, naturalmente, depois do 25 de Abril. Mas eu ouvia-a, lembrando que fora ela, Maria de Lourdes Belchior, a primeira pessoa a falar em público, e em recinto oficial, o Liceu de Pedro Nunes, sobre a poesia neo-realista e portanto sobre a minha. Ver Palestra, revista de pedagogia e cultura, que publicou a sua conferência no n.° 14. Lisboa, 1962, p.75. voltar ao texto

5 «Explicar» in «Factos e Documentos». Seara Nova, N.° 604. Lisboa, 11 de Março de 193

9. voltar ao texto

6 Este texto foi publicado com o título «Uma carta» e uma Nota da Redacção extremamente cativante. O Tempo e o Modo, N.°37. Lisboa, Junho de 1963. voltar ao texto

7 Perdi o «recorte», mas foi publicada no Liberdade e é sem dúvida de 1934 voltar ao texto

8 Vejam-se, por exemplo, os meus poemas «Caminho» e «Balada dos Amigos Separados», respectivamente dos livros Poemas e As Solicitações e Emboscadas, coligidos em Poesia Incompleta (2.ª ed.). Vol 1 de «Obras de Mário Dionísio». Publicações Europa-América. Mem Martins, s/d pp. 67 e 147. voltar ao texto

9 Alexandre Pinheiro Torres, «No 70.° aniversário de Mário Dionísio», Colóquio/Leiras, N.°92. Lisboa, Julho de 86, p.7. voltar ao texto

10 Além do que pode ler-se nas linhas e entrelinhas de quase tudo o que escrevi sobre o assunto, deverei lembrar es­pecialmente a entrevista «Que é o neo-realismo?» (O Primei­ro de Janeiro. Porto, 3.1.45), o artigo «O Sonho e as Mãos» {Vértice, N.°124 e N.°125. Coimbra, Janeiro e Fevereiro de 1954, pp.45 e 93) ou a conferência Conflito e Unidade da Arte Contemporânea (Iniciativas Editoriais. Lisboa, 1958). Sem falar ri A Paleta e o Mundo. voltar ao texto

11 Mário Sacramento, Fernando Pessoa, poeta da Hora Absurda. Contraponto. Lisboa, s/d, p.14. voltar ao texto

12 Mário Dionísio, «Alberto Caeiro, poeta de classe». Ler. Lisboa, 8.11.52. Eduardo Lourenço, «Explicação pelo in­ferior ou a crítica sem classe». O Primeiro de Janeiro. Porto, 26.11.52. voltar ao texto

13 Mário Dionísio, «Une voix qui nous manque». Euro­pe, N.-91-92. Paris. 1953. voltar ao texto

14 Aragon, L’homme communiste. Vol. II. Gallimard Paris, 1953, p.133. voltar ao texto

15 Aragon, La mise à mort. Gallimard. Paris, 1965. Vejam-se especialmente as páginas dedicadas à morte e ao fune­ral de Gorki. voltar ao texto

16 Nota introdutória à 2.a edição de A Paleta e o Mun­do, vol.I, p.7 in «Obras de Mário Dionísio», Vol.5. Publica­ções Europa-América. Mem Martins, 1973. voltar ao texto

17 José-Augusto França, A Arte e a Sociedade Portugue­sa no Século XX. Livros Horizonte. Lisboa, s/d, p.67 e A Ar­te em Portugal no Século XX. Livraria Bertrand. Lisboa, 1974, p.371. voltar ao texto

18 Cf. Mário Dionísio, Encontros em Paris. Ed. Vértice. Coimbra, 1951, pp. 18, 19, 21. voltar ao texto

19 Foi a Alianza Editorial, que traduziu a sua primeira parte: Introducción a la pintura. El libro de bolsillo Madrid 1972. voltar ao texto

20 O Grande Prémio de Ensaio foi atribuído uma só vez pela Sociedade Portuguesa de Escritores (devido ao encerra­mento desta pelos esbirros de Salazar) e sob o patrocínio da Fundação Gulbenkian. Teve o seguinte júri: Adriano de Gusmão, Augusto Saraiva, Luís Albuquerque, Paulo Quintela, Vergílio Ferreira. Na entrega do Prémio e antes do premiado, discursou Vergílio Ferreira (Ver «A Paleta e o Mundo», Espaço do Invisível. Portugália. Lisboa, 1965, p. 171). Uma ane dota verdadeira: no momento solene em que Azeredo Perdi­gão me entregou o almejado sobrescrito, nem ele nem o pú­blico sabiam que tal sobrescrito não tinha nada dentro... Houvera qualquer trapalhada de cheques, de que me tinham parti­cularmente avisado. Recebi o sobrescrito com o abraço da pra­xe, muitas palmas, etc, mas só no dia seguinte entrei na pos­se do dinheiro. Foi uma festa para quem estava no segredo... É-me grato registar que esta obra, cuja 1.ª edição foi publicada em fascículos, só pôde concorrer ao Prémio graças aos esforços do Editor e meu velho amigo Francisco Lyon de Cas­tro, que conseguiu ter concluídas a impressão e a encaderna­ção dos volumes antes do fim de Dezembro de 1962. voltar ao texto

21 Bento de Jesus Caraça, «Algumas Reflexões sobre a Arte». Conferência e Outros Escritos. Lisboa, 1970, p.179. voltar ao texto

22 Ver o artigo de Mário Neves, «PEN Club português, uma história com 40 anos». JL. Lisboa, 11.5.87. voltar ao texto

23 Mário Dionísio, «Escreviver». Palavras, N.°9. Lisboa, Dezembro de 1986, p.53. voltar ao texto

24 Era o desenvolvimento das que realizara no Colégio Moderno. O seu Director, Dr. João Soares, além do trabalho especificamente pedagógico, levava a cabo uma actividade cul­tural dirigida aos alunos mais velhos e respectivas famílias. Aí, a seu convite, pronunciei, não só a citada série, como uma palestra, no 20.° aniversário do Colégio, «Enfado ou pra­zer: problema central do ensino» (depois publicada, por inter­ferência de Rui Grácio, na revista Labor, N.°162. Aveiro, De­zembro de 1956) e ainda outra, de introdução à leitura de modernos poetas portugueses.

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25 Mário Sacramento, «Breve Reflexão sobre A Paleta e o Mundo de Mário Dionísio». Vértice, N.°160-161. Coimbra, 1957, p.38. Luso do Carmo (aliás Óscar Lopes), «Crítica do Livro». Comércio do Porto. Porto, 12.2.57. voltar ao texto

26 Entretanto, ao leitor interessado na vulgarmente cha­mada «polémica interna do neo-realismo», será indispensável conhecer estes dois grupos de textos, todos eles publicados na revista Vértice, de Coimbra:
I. polémica António José Saraiva-João José Cochofel: Cocho-fel, «Notas soltas acerca da arte, dos artistas e do público» (Vol.XII, N.°107, Julho de 52, pp. 343-349); Saraiva, «Problema mal posto» (Vol.XII, N.°109, Setembro de 52, pp.495-499); Cochofel, «Problema falseado» (Vol.XII, N.°109, Setembro de 52, pp.500-504); Saraiva, «Comentários — A propósito dum lugar comum» (Vol.XIV, N.°128, Maio de 54, pp.286-288); Cochofel, «Uma carta» (Vol.XIV, N.°130, Julho de 54, pp.421-422); «Uma carta do nosso co­laborador António José Saraiva» (Vol.XIV, N.°133, Outubro de 54, p.569); Redacção, «Encerramento duma polémica» (Vol.XIV, N.°135, Dezembro de 54, pp.726-727). II. Mário Dionísio, «O Sonho e as Mãos» (Vol.XIV, N.° 124, Janeiro de 54, pp.33-37 e N.°125, Fevereiro de 54, pp.93-101); António Vale (aliás Álvaro Cunhal), «Cinco no­tas sobre forma e conteúdo» (Vol.XIV, N.°131-132, Agosto--Setembro de 54, pp. 466-484); «Uma carta do nosso colabo­rador Mário Dionísio» (Vol.XIV, N.°133, Outubro de 54, pp.566-568); «Uma carta do nosso colaborador Fernando Lo­pes Graça» (Vol.XIV, N.°134, Novembro de 54, pp.645--646). voltar ao texto

27 Cf. entrevista a O Jornal. Lisboa, 13.10.78. voltar ao texto

28 Patrícia Highsmith, A criação do suspense. Trad. por­tuguesa. Relógio d'Àgua Editores. Lisboa, s/d. voltar ao texto

29 Neste país, novamente tão zeloso da sua «identidade nacional», há uma agência da Caixa Geral dos Depósitos, on­de se chamam os clientes ao balcão, dizendo o número das respectivas fichas em inglês! É o Turismo, claro, é o Turis­mo, para que somos profundamente «vocacionados». Isto de se «ser vocacionado para» é um mimo linguístico, não é? voltar ao texto

30 Júri: Jacinto do Prado Coelho, António Ramos Rosa, Maria da Glória Padrão. voltar ao texto

31 Manuel Ferreira, no seu artigo «Monólogo a duas vo­zes: a reabilitação do conto» (JL, 19.1.87) refere-se a este de­sinteresse, entre nós, pela história curta, quanto a ele, «tão exigente, severa, implacável que não se compadece com des­cuidos por ínfimos que sejam». Também Maria Lúcia Lepecki teria algo de isto em mente ao dizer que parte das histórias do mesmo livro «seriam antes micro-romances», não querendo dizer com isso «embriões de romances a serem eventualmente desenvolvidos», mas «romances concentrados no mínimo es­paço possível com toda a redução textual que a 'minimização' em história disciplinou e, com todo o alargamento de signifi­cados que o texto exige porque implícita, alude e sintetiza la-pidarmente um conjunto quase infinito de informações» («Ar­tes e Manhas». Diário de Noticias. Lisboa, 13.3.87). voltar ao texto

32 Cf. Mário Dionísio, «Para a História da resistência Portuguesa». Diário de Notícias. Lisboa, 5.3.75. voltar ao texto

 

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