Horário de Funcionamento:
Segunda, Quinta e Sexta
15:00 / 20:00
Sábados e Domingos
11:00 / 18:00
Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1982, col. Obras de Mário Dionísio nº10,
c./ retrato de MD por Júlio Pomar (1950)
Ó lúcido fantasma a que fugi |
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Obceco-me de ti que mesmo aqui vivias sempre na floresta |
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Entre arbustos de outono |
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Como era belo o barco |
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Que centrípetas forças arrastamos |
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Céu de espantosos gritos que ficaram nos ecos da memória |
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Uivo rouco de apelo |
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Voltado para o parque de velhas árvores sem folhas |
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Uma folha? Passos? Restolhada |
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Tanta gente sentada nesta sala deserta |
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Esta mão que inconformada se conforma |
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Onde te vi olhar |
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Encostada à janela de guilhotina |
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Assustado rufo de asas na floresta |
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Quando as palavras abrem canais de transparência |
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Vê-se agora melhor o mais distante |
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No grande côncavo da noite a bicicleta |
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Ele vem num silêncio de descalço |
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E outros que chegavam trazendo pelo escuro |
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Ter medo é próprio do homem |
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Os pinhais não são hoje como esse de névoa |
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Do que não volta mais desponta outro prazer |
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Ó frescura |
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Translúcida brandura |
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Estamos agora em paz |
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E de súbito |
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A vida inteira com as unhas vorazmente abrimos |
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Cartucheira de flores a tiracolo |
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Vejo-o no fim dum túnel lá muito de onde em onde |
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Trinta anos depois |
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Pergunto as horas na rua para ver |
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Os olhos São os olhos que mais estranho |
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Pior que não cantar |
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Quantos sabem |
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Palavras de alcatrão escritas com luz no muro |
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Esse olhar morno |
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Que nojo São carcaças |
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Oh que cheirinho a antigamente |
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Foi hoje a enterrar |
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A chuva escreve-lhe nos ombros |
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Soldado ou eu fardado |
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Depois da festa pois Se festa |
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Ai de quem aprendeu |
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Oh doce paz interior absurda |
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Quem dera separar o que é e o que está |
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Compreender-te é saber o outro lado |
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Não digas para sempre |
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Quanto ainda durarão |
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Quando não se gastara ainda o azul das baías nos cartazes |
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Um comboio que no campo ao longe passa |
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De entre o tanto que esquece |
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Em tempo e à margem |
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Não há momentos banais |
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Eis-me o Rembrandt hoje nas veias |
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O amarelo da seara ao sol |
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Toda a tarde jazz E que me rala imaginar |
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Ela canta agarrada como que sensualmente ao microfone |
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Jóia discreta |
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Dão horas longe numa aldeia |
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Mal se vêem os prédios |
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País de azulejos partidos |
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Jovem de riso ardente |
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Retrato de frente e de perfil |
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A floresta omnipresente |
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Nós vivemos de mitos dentro de mitos para os mitos |
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Imóveis imagens pardas |
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Acender a lareira num dia quente lá fora |
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Dê-se por acabado |
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Há hoje outras respostas elas mesmas perguntando |
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Quando dei por isso já era sempre tarde |
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Alguém morre |
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Uma alvorada onde relincham potros |
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É hoje o primeiro dia |
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Deixem-me alargar prolongar exagerar o passeio |
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Venho atravessando a custo há milhares de anos |
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Estás definitivamente tão cansado |
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Num banco de jardim ao sol |
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Assim se fazem as cousas |
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O que em mim dorme |
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Quando a terra se acaba |
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E curioso |
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Rosto como os detesto |
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Oh sedução dos destinos ignorados |
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Para que alheias paragens onde é difícil respirar |
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Quem sabe que entre altos cedros aqui estás |
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E então começou a dormitar |
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Acaso interessa |
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Saber ver dos bastidores |
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Há um de prodígio alguns minutos antes do sol-pôr |
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Quem vier |
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Concha que se fecha devagar |
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Acaso interessa
a data do nascimento
ou a de agora?
A nossa idade é a do mundo
A dele a nossa
Ao longe lenta uma carroça
leva-nos mortos para o
fundo do tempo
E ele ali mesmo recomeça a
toda a hora
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(Janeiro de 81)
Foi hoje a enterrar
o velho torcionário
com honras militares
Cercavam-no os seus pares
impunemente
de morte ameaçando
quem tal via
Do crime funcionário
chegou ao fim aproveitando
a apatia conivente
instituída
A teia da vergonha entretecida
de espanto empesta o ar
Viva a democracia!
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(mesma data)
Oh que cheirinho a antigamente
neste cair da noite na cidade
As bruxas saem das tocas
e escarranchadas em brocas
atravessam vorazmente
a nossa perplexidade
Altos carros de sombra estacionados
com maxilares de gruas
demarcam campos de acção
De polegares no cinturão
bandos de furões fardados
esperam nas esquinas das ruas
Já quem passa olha e não vê
não responde nem pergunta
Lembra-lhe bem o que houve
este cheirinho E o que ouve
dá-lhe a chave do que lê
Pairar sim mudança nunca
Ai que cheirinho real
às mortes pela calada
Abutres togados ditam
sentenças que ressuscitam
contra a lei o arraial
dos netos de Torquemada
Regressam os saneados
saem miasmas dos lodos
O que é passado passou
Dão-se as mãos o galo e o grou
Cheguem-me nesses explorados
que Portugal é de todos
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Pior que não cantar
é cantar sem saber o que se canta
Pior que não gritar
é gritar só porque um grito algures se levanta
Pior que não andar
é ir andando atrás de alguém que manda
Sem amor e sem raiva as bandeiras são pano
que só vento electriza
em ruidosa confusão
de engano
A Revolução
não se burocratiza
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(Março de 78)
Que nojo São carcaças
de gente morta por dentro
Escondem mucos pegajosos
que empestam toda a paisagem
São abutres pelados são caraças
de olhos vítreos de intenção
são bostas de sangue e o centro
de onde mana a corrupção
Só nunca serão carrascos
porque lhes falta a coragem
O medo os faz silenciosos
pelas costas atrevidos
Movem-nos ódios e ascos
flatulências de ambição
pequeninos verrinosos
gordurosos retraídos
São fura-greves são espias
vaidosos de ser pisados
segregam epidemias
de vergonha São repolhos
de gangrena engravatados
São piolhos são piolhos
são piolhos
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Tanta gente sentada nesta sala deserta
Outros de pé encostados ao fogão de costas para a janela
Só se entendem é claro porque nunca se encontraram
Entram e saem pela porta sempre aberta
E eu recordo com eles coisas que não se passaram
o que a vida não foi que é o que brilha nela
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(1 de Julho de 81: morte do Carlos de Oliveira)
É hoje o primeiro dia
em que há mundo sem ti
Esforço-me por entender o sem sentido disto
Mas não se pensa o que se chora
Espanto-me sim de esta cidade para mim vazia
ser para os outros como sempre a vi
Que pode haver agora?
Que enganosa miragem?
Tu não foste fazer uma viagem
Tua ausência não é um intervalo
Vai-se indo pouco a pouco o porque existo
E nunca mais também sem ti
saberei sequer reinventá-lo
Mário Dionísio
Ver aqui tradução do livro em francês por Regina Guimarães
Voir ici la traduction du livre en français par Reguina Guimarães (Troisième âge)
André Spencer e F. Pedro Oliveira para Casa da Achada - Centro Mário Dionísio | 2009-2022