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Casa da Achada

Leitura Furiosa 2009 em Lisboa

 

 

Desenho de Bárbara Assis PachecoDE CONTA QUE SOMOS NÓS AQUI REUNIDOS

 

As quebras de linha são mudanças de falas.

 

De modo que só tarde é que descobri o prazer do casamento. Tive de ler e ir a reuniões para descobrir que faz bem ao corpo, faz bem à pele. A mulher nunca é velha. A mulher é na cabeça.

 

Eu não estou furiosa com a leitura. Nada. Leio de tudo. Qualquer bocado de papel que me apareça à frente eu leio.

 

Eu cá não gosto de ler. Gosto mais de escrever. E desenhar.

 

Eu gosto de ler mas não tenho dinheiro para os livros. São muito caros.

 

Então e as bibliotecas.

 

Pois mas isso é para quem pode andar, que eu não tenho calcanhar.

 

Apresentemo-nos.

 

Estamos todos entre os setenta e tal e os oitenta e tal. Menos aqui esta senhora que tem cinquenta e tal.

 

Eu sou o cantador da canção nacional Carlos Silva.

 

E eu sou o que sou, sou o que vês aqui à tua frente. Posso-te contar coisas do meu passado mas esse já não sou eu, esse ficou lá para trás. Este aqui é que é eu. E às vezes olho em volta e parece que só vejo drogados e prostitutas e bandidos. E tenho medo de sair à rua.

 

O que eu sou não é a mulher que mal começou a trabalhar aos onze anos lhe caiu uma máquina em cima do pé e ficou com o pé ferido. Que depois se soltou da corrente o cão do patrão e se lhe atirou ao segundo pé e ao primeiro e ficou com os dois pés feridos. Entretanto aquilo infectou e andou assim meses. Eu não sou essa, que agora tenho os pés bons, eu sou esta do aqui e agora, que nem preciso de bengala nem de lemas de vida.

 

Pois, o pintor que eu era porque do Minho é que vinham os pintores e os estucadores, o pintor que eu era não tinha medo de sair à rua, e agora estou reformado por causa das cataratas que foi um médico que me riscou o olho todo para se vingar de mim e

 

Calma homem que assim só falas tu. Eu também quero proclamar e proclamo que gosto de ouvir o fado. Mas para mim o fado não é cá violinos, é viola e guitarra. E a Marisa escangalha-se toda.

 

O que eu sou é este senhor e esta senhora, depende de quem fala, que frequentam aqui o centro de dia da Mouraria porque de outro modo tu não me encontravas, ó escritor, pelo menos na qualidade em que vens.

 

Já comigo as coisas não se passam da mesma maneira, senhor escritor, que sou a mulher que não tem calcanhar.

 

Espera lá, antes de continuarmos é melhor pormos os pontos nos is. Nós o que estamos é a afirmar a impossibilidade de contarmos a história da nossa vida porque senão vejamos. Explica lá tu, que tens mais jeito.

 

Estas coisas que estamos para aqui a dizer são baseadas nos apontamentos do escritor enquanto, muito atrapalhado ouvia o que lhe dizíamos, e ao mesmo tempo escrevinhava uns gatafunhos que depois nem sequer conseguia deslindar, já se sabe, das coisas que escolhemos contar-lhe de nós, uma espécie de retrato difuso, retocado a lápis.

 

Mas ó senhor escritor, eu sou a soma de tudo o que me aconteceu. Sou tudo. Só não sou o calcanhar que perdi. Se quiser ouvir, fica com pano para mangas para escrever um grande livro.

 

Os encarregados escondiam-se de nós para fazerem as tintas, digo eu já não pintor, que era para a gente não aprender. Mas a gente ia espreitando e ao fim de uns tempos com a ajuda da experimentação descobríamos. No meu tempo só se chamava pedreiro a quem trabalhava com pedra. A pedra com que se construíam as casas. Depois veio o cimento e agora é tudo pedreiro

 

Eu sou mulher e fui servente de pedreiro. Fazia cimento e assentava tijolos e carregava baldes. O meu avô não queria rapazes porque estavam sempre a jogar ao pião e ao berlinde. Oito anos tinha eu.

 

Sim mas eu já não sou pintor.

 

E eu também já não sou pedreira.

 

Sim, mas eu continuo a ser o que fui. Comecei por ser o cantador da canção nacional Carlos silva. Estreei no Royal Cine onde é hoje o Pingo Doce e no fim do espectáculo davam-me prendas. Depois aos 6 anos entrei numa opereta no Apollo. Depois à medida que fui crescendo foram-me dando cada vez menos prendas até que tive de arranjar outro emprego e fui a vida toda distribuidor nas alfaiatarias. Distribuía calças, camisas, casacos. Depois de reformado voltei aos teatros e agora estou a ensaiar um espectáculo no teatro Taborda. Agora sou outra vez o cantador da canção nacional Carlos Silva.

 

Para os nossos leitores em francês o Pingo Doce é um supermercado que ocupou o espaço de um antigo cine-teatro. As casas de banho ficam nos camarotes.

 

Eu trabalhei em tudo. Das torneiras às gravatas.

 

Eu também trabalhei em gravatas.

 

E eu, cantador da canção nacional Carlos Silva, o período da minha vida em que distribuí pela cidade gravatas e casacos, foi longo mas não conta nada, mais ou menos dos dez aos setenta,

 

O meu homem chegava bêbedo a casa ou atravessado, que é quando não estão bem bêbedos e se irritam com qualquer coisa que dissermos. E batia-me. Foram vinte anos. Depois adoeceu e eu tratei dele, tratei dele muito bem, mas olhe, eu digo-lhe que já não lhe tinha amor, tinha era pena dele. No fim já lhe mudava as fraldas. Depois de morrer a minha casa foi-se degradando porque ele era muito jeitoso com as coisas da casa, lá isso era, consertava tudo. E agora choro, senhores, tenho os olhos a entornar. E esta é a história da minha vida.

 

Quando me veio o período pela primeira vez aos onze anos também comecei a chorar. O que é isto, o que é isto. São lágrimas de uma qualidade que nunca mais vi.

 

Ninguém vive só. Por mais que possamos viver sozinhos estamos sempre rodeados de gente, por cima, por baixo, pelos lados.

 

Então e o meu, entrava em casa aos pontapés. Quando o deixei pedi dinheiro ao meu pai para uma cama e ele disse-me, vai ganhá-la ao Intendente.

 

Para os nossos leitores em francês, fica explicado que o Intendente é uma zona de Lisboa conhecida pela má vida das mulheres que ganham a vida na vida.

 

E eu fui trabalhar para uma fábrica de camisas mas reformei-me aos vinte anos porque sou asmática e era alérgica ao ambiente da fábrica.

 

Também distribuí camisas, mas isso não interessa nada. Sou cantador da canção nacional Carlos Silva.

 

Tinha eu dezoito anos era apanhadeira de malhas e disseram-me vai lá abaixo e diz para me mandarem as camisinhas. Lá em baixo desataram-se a rir e disseram que não era ali, mas sim nas costureiras. Cheguei às costureiras e também se riram e mandaram-me para as engomadeiras, e eu cá para mim, tenho cara de coliseu ou quê?

 

Não sabias o que eram camisinhas.

 

Eu sabia lá, eu não sabia nada, eu era tão certinha.

 

Para os leitores em francês, aqui vai. Camisinhas é preservativos.

 

Por isso é que eu não gosto do papa, quer que as pessoas morram todas com doenças. Por isso é que eu sou católica mas não sou praticante. Não gosto de padres. Não pratico.

 

É verdade, a certa altura almoçámos todos juntos, já foi há um bocado já me esquecia, aqui na cantina do centro de dia. A sopa estava boa. O resto era amor servido como dobrada à moda do Porto fria. Agora que já passou uma hora e tal e a digestão já vai adiantada, vamos ouvir a história da mulher que não tinha calcanhar.

 

Quando me iam cortar o pé eu não queria e então disse assim aos enfermeiros cheios de força que me prendiam à maca: eu tenho uma médica que é especialista em operar crânios. E ninguém quis saber mas eu sabia que me queriam cortar o pé. Eu tenho uma médica especialista em operar crânios, dizia eu. E então puseram-me a dormir e só me tiraram o calcanhar. Está a ver aqui o par de meias enrolado? Debaixo do calcanhar, está a ver? Debaixo do calcanhar salvo seja que não o tenho. Debaixo do pé, que lá consegui que me deixassem o pé. Está a ver? Agora já acredita que a minha vida dava para um livro?

 

Nunca estamos sozinhos e nunca dizemos mal de nós próprios. Somos sempre os heróis das nossas histórias.

 

Mas se quiser que eu lhe conte tudo ficamos aqui dias, e o senhor fica com matéria para uma obra-prima.

 

Eu sou hipertensa há muitos anos

 

A mim já me saiu de tudo. Só me falta sair o euromilhões.

 

Estamos todos aqui a fazer parte de uma coisa, a fazer de conta que somos nós aqui reunidos a fazer parte desta coisa. À volta de um escritor que depois vai fazer um apanhado.

 

Um apanhado do que aqui foi dito de livre vontade por mais amordaçados que todos sentimos que estamos sem sabermos bem porquê, mesmo quando dizemos do almoço que a sopa está boa e do resto não nos podemos queixar.

 

Miguel Castro Caldas

com Arminda, Carlos, Ermelinda, Júlio, Lurdes e Maria Irene

no Centro de dia da Mouraria.

 

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