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Ora o menos que poderá dizer-se da minha experiência de aluno liceal2 é que foi rica e exemplar. Um livro não chegaria para evocar, mesmo sem zelos de minúcia, esses sete anos de aprendizagem deplorável, em que, por infeliz acaso certamente e salvo duas excepções (digo e sublinho duas) vivi na triste dependência de professores que sempre me mantiveram no equilíbrio assaz instável entre o enfado e a vontade de rir, às vezes irrestível, e o medo de ser “chamado”, entre o desejo de saber e o receio de perguntar fosse o que fosse, entre a alegria de ir “passando” e uma desconfiança silenciosa sobre a minha possível incapacidade de aprender. Porque se alguma coisa depressa compreendi foi que o saber e o “passar” não eram exactamente a mesma coisa.
De entre a legião de professores que me couberam em sorte – e alguns seriam (como dizer?) vulgares, medianamente cumpridores mas nada mais, e por isso decerto se esfumaram na grande massa do que lá vai sem deixar rasto ou quase -, há uma boa dúzia deles que nunca pude esquecer pela mestria consumada na arte de deseducar.
Como se fosse hoje os vejo na minha frente, entrando na aula, subindo para o estrado, abrindo a caderneta, perorando, e inconscientemente estimulando a descoberta espontânea do comportamento sonso ou insolente, das manhas com que enganosamente se triunfa e, mais grave que tudo, fomentando o desinteresse profundo pelo que mais deveria e poderia interessar.
Não ter tido nunca um verdadeiro professor de matemática, não ter ido a um laboratório de Física ou Química mais que duas ou três vezes -, para ver de longe o que deveria ser visto de perto e sobretudo com as mãos -, dirá o bastante. [...]
Custará a crer [a qualquer professor de línguas minimamente actualizado, mesmo daquele tempo] que todo o primeiro período do quinto ano, um professor de inglês nos tenha feito passar as aulas, do princípio ao fim, a escrever na pedra e a copiar escrupulosamente nos cadernos os símbolos da transcrição fonética e longas prosas com as respectivas explicações e justificações. [...] A geometria, coisa estranha e impenetrável! Havia que recitar, sem falha de uma vírgula, os teoremas e os respectivos corolários, e repeti-los, repeti-los (aluno após aluno), perante um mestre calvo e redondinho, que por infelicidade sua e nossa, era excessivo duro de ouvido. [...] E a ginástica?... Essa tinha outros atractivos e outros perigos. Se o tempo estava bom, o “ginasta” que nos instruía, sempre de fraque, colarinho de goma e Notícias debaixo do braço, ia connosco para o campo de jogos, dava-nos a bola, sorridente (“podem jogar”) e, com as abas da labita cuidadosamente viradas para cima, passava a “aula” toda à sombra de uma árvore a ler o seu jornal. Mas se o tempo estava mau, era o diabo: não havia leitura das notícias, ficávamos no ginásio e, aí, depois do “Marche!, esquerdo-direito, esquerdo-direito, um...dois, um....dois, um...dois” e da longa prática do “esquerda, volver!” fazia-nos trepar aos espaldares, deixava-nos ficar ali eternidades voltados para a parede, pé-ante-pé aproximava-se e, quando menos se esperava, aplicava-nos reguadas de respeito se a posição era menos impecável.3
[...]
Como se fosse hoje vejo-os na minha frente, sem rancor, naturalmente – é coisa que os anos levam... - , mas ainda com espanto. Aquele professor, de Inglês, que, incapaz de manter a menor disciplina, aos primeiros minutos habitualmente ordenava: “Esta metade da turma para fora da aula!” E que, quando invariavelmente alguém o informava, com verdade ou sem ela: “Esta foi ontem, senhor doutor”, resolvia o problema deste modo: “Então sai a outra metade!”4 Aquele outro de Português, com perfil de tribuno romano, formado em Direito, que era incansável em narrar e repetir os seus triunfos nos tribunais e que, para termos a noção perfeita da popularidade de que gozava, assomava frequentemente à janela e, saudando passantes imaginários, dizia paternalmente lá para fora: “Olá! Como vai isso?” (fingia ouvir a resposta) “Esteja descansado, homem, não se apoquente, eu vou tratar do caso”, o que lhe dava assunto para o resto do tempo: “É um pobre homem, coitado, que apareceu lá no escritório..."5 [...] E aquele outro, sobretudo esse, de Latim, que dava aulas de chapéu na cabeça e que olhando-o qualquer de nós com simulada surpresa, se punha logo aos berros: “Sua besta, não vê que estou constipado?”
Tinha fama de muito sabedor este homem de chapéu na cabeça (“até andou no seminário!”) e, além de uma linguagem que não seria a mais aconselhada (“besta” era a palavra menos crua do seu vocabulário), orgulhava-se da isenção que usava na apreciação dos alunos. Todos os dias avisava: “Vou chamar um ao acaso, um que nunca cá tenha vindo”. Abria a caderneta realmente ao acaso, mas não era o acaso, era a deformação que o uso lhe dera, que a fazia abrir-se sempre na mesma folha: a do meu companheiro de carteira. Bem protestava o rapaz, no meio do silêncio da turma, à qual aquela técnica sabia a uma benesse dos céus. Que era chamado todos os dias. Que ainda na véspera o fora. Mas o mestre, que não tomava nota de nada nem de nada se lembrava, fulminava-o: “Sua cavalgadura, você acha que me engana? Vamos mas é à lição”. Ninguém estudava nada, senão o pobre que, graças ao “método” das chamadas ao acaso, lá ia todos os dias, dizendo mal à sua sorte. Os outros liam um livro qualquer, passavam cadernos a limpo, conversavam, jogavam à batalha naval ou iam mesmo até uma das janelas, a do fundo, fumar uma ponta de cigarro.
Mas a essa técnica pedagógica da isenção regida pelo acaso, fiquei eu devendo algumas semanas de inesquecível aflição, que viria a ter um desenlace cómico, não de todo indiferente a este tema da experiência e da tal primeira observação pedagógico-didáctica que me foi dado fazer nos começos da vida.Um belo dia a caderneta que se abria ao acaso abriu-se, como sempre, na folha do meu companheiro de carteira. Mas, já este se preparava, de livro em punho, para avançar para o estrado (a “chamada” era, evidentemente, no estrado, a dois passos da secretária do docente) quando qualquer aragem que entrou pelas janelas, o próprio bafo do mestre, um capricho da sorte, fez a folha oscilar ligeiramente, hesitar, descair molemente para a direita ou para a esquerda e o dedo do professor pousou noutra – que era a minha. Estremeci. O meu número e o meu nome completo reboaram gravemente pela sala. Espanto geral, situação desesperada. A única saída era confessar logo ali, com franqueza (relativa...) e de ar contrito, que não pudera “naquele dia” preparar a lição. Disse-o com a boca e sobretudo com os olhos aterrados, com certeza. Sob as abas do chapéu, os óculos do professor faiscaram: “Não preparou a lição?!” E, voltado para a turma: “O que é que este gajo diz? Há aqui alguém que não prepare sempre as lições?!” E, no silêncio total daquele momento rigorosamente inédito, ouvi esta sentença sem apelo: “Pode sentar-se. Tem zero!”
Durante dias e dias, à noite quando acordava, não cessava de ouvir, transido, por cima de todas as conversas, a todas as horas e em todos os lugares, aquela voz de trovão: “Tem zero!”. Eu tinha tido um zero... Não podia dizer isto em casa. Não via qualquer possibilidade de recuperação. O meu companheiro de carteira voltara à sua rotina de ser chamado todos os dias “ao acaso”. Que podia eu fazer? Até que, dias depois, em casa dumas tias idosas que visitava de vez em quando, conheci um senhor das suas relações, um juiz, muito senhor de si e muito cavalheiro, daqueles que queriam logo saber que idade tínhamos, como íamos nos estudos, os nomes dos professores. Ao ouvir o nome do de Latim, a fronte iluminou-se-lhe: “Mas é um grande amigo meu, vou falar-lhe a seu respeito.” Ou seja: o descalabro. Pedi, roguei, supliquei que não o fizesse. Que não gostava de cunhas. Que não era preciso. Sob o sorriso complacente das tias, tão encantadas com o facto de conhecerem pessoas de influência como com a seriedade comovente de um sobrinho tão jovem e inocente que recusava ter cunhas, voltei a pedir, a suplicar. Tudo menos saber-se a vergonhosa situação em que me encontrava (“Pode sentar-se. Tem zero!”). Mas em vão. Conhecer gente, intrometer-se, recomendar, trocar favores fazia parte do estilo de vida daquele senhor amável que a infelicidade me fizera conhecer. Quando voltei a casa das tias com a minha mãe no domingo seguinte e vi que, por desgraça, o tal juiz lá estava novamente, fiquei de boca seca. Mas quando supunha chegada a hora da verdade, o homem enorme e cheiroso a água de colónia, levantou-se, radiante: “Venha de lá um abraço, meu rapaz. É a primeira vez na minha vida que recomendo alguém e me dizem: “oh esse não precisa de recomendações, é um excelente aluno”. De sorriso enfiado confirmei a minha desconfiança de que a verdade era algo de complexo e misterioso. E foi assim que conquistei naquelas bandas da família a ridícula fama de grande “latinista”, que nunca fui. Nem grande, nem pequeno, nem pequeníssimo. O “excelente aluno” teve 10 no fim do período. Restou-me sempre ao menos, a consolação de que não foi o solícito juiz que o conseguiu. Foi realmente o acaso.
Vejo-os, pois, na minha frente, esses e outros. Até um vulto notável das nossas letras, ensaísta e autor de uma densa História da Literatura Portuguesa, a propósito da qual Sérgio o considerava “um espírito opulento na elaboração fantasista, mas pouco dotado para a análise crítica”, membro da Academia das Ciências e autor também duma brochura sobre O Pensamento político do exército, que só mais tarde conheci, o qual, despeitado por empecilhos burocráticos dele fazerem transitoriamente um simples professor de liceu, reduzia as suas aulas a mandar ler em voz alta a História de Portugal do Oliveira Martins e O Banquete de Platão, ouvisse-os ou não alguém. Sem um comentário, a mais ligeira explicação, uma palavra. Pousava as mãos cruzadas no castão de prata da bengala e, olhando para longe pelas lunetas fumadas, ouvia ler, ler, ler. Até que a campainha soava e lhe ouvíamos a voz enfadada: “Podem sair”.
[...]
Compreender-se-á então melhor o carinho e a saudade, o vivo sentimento que talvez se chame gratidão, com que, dessa massa imensa de gente de vários níveis e idades, competentes alguns noutros ramos de actividade, incompetentes outros nas próprias matérias, em que eram diplomados, todos porém destituídos por igual da capacidade de ensinar ou de simplesmente conviver, aos meus olhos emergem as tais duas excepções (digo e sublinho duas): as dos dois professores que, ao todo, tive durante durante sete longos anos nos três liceus que frequentei.
Nas aulas de ambos, o quadro, o estrado, as carteiras, as paredes desapareciam. Ninguém falava e todos falavam. O toque para a saída surpreendia sempre. Como se passava o tempo? Estávamos algures, num lugar desconhecido de verdadeiro convívio e descoberta permanente, de onde nunca se saía exactamente como para lá se entrara. Algo entretanto acontecera. O mundo tornava-se maior e outra coisa. Crescíamos por dentro. Um destes professores, vim a conhecê-lo noutro pé e de perto muitos anos mais tarde e a ser seu jovem companheiro, nem sempre concordante, de lides literárias e políticas. O outro era um perfeito desconhecido, de que nunca mais ouvi falar, senão recentemente e por acaso, já ele morrera há muito. O primeiro chamava-se Luís da Câmara Reys, o segundo Arnaldo Mendes.
Câmara Reys, então na casa dos quarenta, tinha uma finura de trato exemplar e a sensibilidade literária que se sabe. Companheiro de Raul Brandão e de Teixeira Gomes, de Proença e de Sérgio, conhecia linha a linha o Eça e o Ramalho, sobre eles escrevia (ou viria a escrever?) e ele próprio como eles um pouco escrevia. Mas fiel ao seu Guyau (“je me sens pris d’amour pour tout ce que je vois : l’Art, c’est de la tendresse”), nada disso o impedia de ler atentamente a prosa arripiante dos seus alunos do quinto ano e de corrigi-la com minúcia e de modo a estimulá-los. Não poderei esquecer o ar feliz com que um dia me devolveu uma redacção, apontando para duas ou três linhas: “Há aqui qualquer coisa! É preciso continuar!”
Mas foi talvez o outro, o que não era escritor nem ninguém conhecia, que mais profundamente me marcou e, não receio dizê-lo, para a vida toda.
Mário Dionísio
Notas:
1 Título de uma brochura de 46pp publicada pela Abril em Maio – associação cultural, no âmbito de um ciclo “A partir da Obra de Mário Dionísio” (2001). Trata-se do primeiro capítulo (autobiográfico) de um livro inacabado de Mário Dionísio que teria o seguinte título: Reflexões dum professor sobre escola e socialismo. Neste primeiro capítulo, o autor explica como escolheu ser professor. voltar ao texto
2 Mário Dionísio frequentou os 3 primeiros anos do liceu (correspondentes aos actuais 5º a 7º anos de escolaridade) no Liceu Camões (1926-1929), Foi transferido para o Liceu Gil Vicente em 1929, na altura em que foram definidas zonas de influência pedagógica de cada liceu de Lisboa (ele morava na Almirante Reis), onde frequentou os 3 anos seguintes (4º ao 6º , correspondentes aos actuais 8º ao 10º anos). Foi no Liceu de Évora que terminou o Liceu.
Não incluímos no texto que aqui se transcreve as passagens em que são referidos professores que não eram do Gil Vicente ou que talvez não fossem. voltar ao texto
3 Este professor também aparece referido (com as iniciais A . M.) no texto de Mário Dionísio, “Memória Desconexa”, publicado no Boletim dos Antigos Alunos do Liceu Gil Vicente, de Maio de 1962, e transcrito em Memórias de escritores que foram alunos do Gil Vicente (Núcleo Museológico da Escola Secundária de Gil Vicente, 2003). voltar ao texto
4 Este professor também aparece referido (com as iniciais A . R. P.) no texto de Mário Dionísio, “Memória Desconexa”, publicado no Boletim dos Antigos Alunos do Liceu Gil Vicente, de Maio de 1962, e transcrito em Memórias de escritores que foram alunos do Gil Vicente (Núcleo Museológico da Escola Secundária de Gil Vicente, 2003). voltar ao texto
5 Este professor também aparece referido (com as iniciais T. S.) no texto de Mário Dionísio, “Memória Desconexa”, publicado no Boletim dos Antigos Alunos do Liceu Gil Vicente, de Maio de 1962, e transcrito em Memórias de escritores que foram alunos do Gil Vicente (Núcleo Museológico da Escola Secundária de Gil Vicente, 2003). voltar ao texto
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