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Vivíamos, com a doença na alma, em permanente escassez de meios, a liberdade aprisionada no cerco do Regime. Vivíamos o sonho da arte, o apelo da cultura possível, entre livrarias sem livros, bibliotecas envelhecidas ou a notícia de banimentos odiosos cuja troca, murmurada, se fazia no convívio do café — o Martinho, o Chiado, a Brasileira — e se analisava como ameaça à nossa própria esperança. E assim, enquanto a Escola Superior de Belas Artes nos facultava um treino obsoleto no domínio das técnicas convencionais da pintura e da escultura, compensado por vocações empenhadas, por talentos surpreendentes, a verdade da vida era reconstituída pela noite dentro, nos diálogos de cada tertúlia estudantil, sob a claridade imperfeita de textos policopiados, de documentos calorosos, da modernidade emergente que sobrava das exposições gerais de artes plásticas e que quase todos, estupefactos, havíamos absorvido no grande salão da Barata Salgueiro. Pobre contentamento para convicções de província, já abaladas na sua literatura de compromisso — quase muito, apesar de tudo, à luz do nosso desencanto, no interior de pobrezas reais e difíceis em quartinhos de exílio, desde o Saldanha às transversais pombalinas ali perto do Largo da Biblioteca Pública.
Nesse contexto, vivendo eu deslumbrado pelas coisas raras da abertura a novos valores, embora submerso nas águas opacas da mais reles contingência, Mário Dionísio foi para mim o professor de estética que não tive, o mestre da oficina pensante que não havia, o cientista da arte, em suma, que certos teóricos afrancesados fingiam ser, intérpretes de uma retórica afinal simplista e de modelos aí conquistados, onde a crítica ia fixar o seu abusivo reinado. A PALETA E O MUNDO começara entretanto a circular de mão em mão. Dava-nos a ver, pelo ritmo da sua escrita calorosa e pela vivacidade das suas ideias, um projecto capaz de englobar a obra de arte simultaneamente no espaço das suas especificidades e na perspectiva inalienável da sua função social. Ao contrário das poucas vozes que já se fixavam, em nome da descoberta e da liberdade, nas cúpulas de cada tendência (isto é: dos novos dogmas), Mário Dionísio desfazia os nós dessa vontade de exclusão, desse estreitamento redutor, desse apelo à mitologia local e à igreja onde os valores integram finitudes obscuras, quase nunca um decisivo discurso para o futuro.
Entre os anos cinquenta e os anos sessenta, Lisboa vivia a bipolaridade irredutível da figuração e da abstracção, privilegiando o radicalismo dos que supunham poder empurrar as formas plásticas para certos pontos de chegada, negando a força exemplar da memória, do testemunho, da representação transfigurada e generosa em torno das grandes solidões contemporâneas. É certo que a arte, ao reflectir-se (reflectindo) nos espelhos da vida, envolve uma conflitualidade intrínseca. Mas essa natureza, essa sim, resolve-se em si mesma. É um problema de fundo que não informa guerras periféricas, antes se assemelha com a bissectriz de vários ângulos, de vários pontos de vista, integrando, por sucessivos ajustamentos, a ideia de retorno à convergência e de encontro.
«Se a arte exprime, sem dúvida alguma, as importantes diferenças que a vida social impõe aos homens, se indirectamente lhes dá consciência delas e, deste modo, poderosamente as estimula, ao mesmo tempo, a arte, inesperada e inevitavelmente, exprime as mais profundas e surpreendentes semelhanças que, subterraneamente, através de todos os antagonismos, os aproxima»: Mário Dionísio surgia assim, ao nível de uma consensualidade polémica que ultrapassava os extremos, como ensaísta capaz, apesar disso, de discordar de «certas teses sobre criação estética, função social da arte, realismo» — e na hora em que se generalizava um furor dogmático nestas áreas, aliás contrário a todo o pensamento crítico cuja base aspire à isenção teórica. A exploração primária do divórcio entre a arte e o público, papão de papel que ainda hoje justifica os mais escandalosos lugares comuns favorecendo a mediocridade da maioria dos filmes distribuídos, das escolhas na rádio e na televisão, para não falar de uma imprensa publicitária, telegráfica, sensacionalista, onerada pelo lastro do mercantilismo futebolístico, era denunciada por Mário Dionísio em vários planos e reflectia-se, sem equívoco, sobre as vozes irredutíveis que procuravam imolar as figurações empenhadas nas chamas imperiais dos modos de formar ditos modernos — abstracção com raízes na escola francesa, tímido florescimento de um surrealismo em português. Denúncia feita no tempo próprio, com elegância e coragem, contra os novos sacerdotes e sobretudo os novos papas, o texto principal daquele autor, informado pela prática concreta da pintura, da sua fala e dos seus caprichos, nem sequer procurava dar cobertura teórica, acima de qualquer outra orientação, ao neo-realismo que se afirmara entre nós com a força expressiva de artistas como Júlio Pomar. Tal facto é relevante, depois dos estudos históricos, e ensaios de passagem, que tentaram subestimar a importância desse movimento, a sua incidência sócio-política, estética, ética e cultural. A crítica dava o seu assentimento a casos paradigmáticos como «Maria da Fonte» ou «O Almoço do Trolha», mas para concluir, com outros exemplos e ao contrário, que aquela via de expressão significava a perda da identidade da pintura em face de alegados referentes literários. Encarava-se como certa a desnecessidade de qualquer escrita visual aliar a essência do seu meio técnico ao fluxo dos problemas (ou temas) da pessoa humana. Mas se «0 Almoço do Trolha» conseguia a síntese possível em tal domínio, objectivo tantas vezes alcançado com brilhantismo por Portinari, é óbvio que a questão das artes plásticas só por zelo dogmático, sem abertura, se poderia resumir ao primado absoluto da essência dos elementos estruturais contra as formulações complexas em que certos referentes afloravam crises da vida colectiva, o medo, a solidão, o isolamento do sonho, a margem dos injustiçados.
Ao entrevistar Mário Dionísio para o programa televisivo «Portugal Contemporâneo: a arte possível», tive oportunidade de sentir, na sua presença serena e nas suas palavras, a dimensão sensível de um homem cuja intuição criadora se projecta no modo de pensar as questões estéticas e sociais — entendimento caloroso da própria história do nosso universo poético, sabedoria experimentada dos silêncios repressivos, testemunho de gestos colectivos em nome de uma cultura resistindo ao obscurantismo das instituições oficiais. Mário Dionísio refere com certa distância, mas com verdadeiro empenho de amador, a sua experiência plástica, o pseudónimo de José Chaves que usou no tempo das Exposições Gerais, situando-se sempre na perspectiva da arte moderna por oposição àqueles que desejaram tematizar uma revolução na pintura em nome dos explorados e sob a tutela formal do naturalismo. De facto, e ao contrário, ele quis defender a grande utopia da unificação das artes, num espaço teórico, técnico e de intervenção onde as forças interactivas das várias linguagens alcançassem uma universalidade dentro da própria denúncia. A verdadeira polémica do neo-realismo passava por esse esforço, não pela simples eleição dos ofendidos e humilhados como tema ilustrável na esteira de uma representação naturalista, já morta à partida, alheia às novas descobertas expressivas do século. Essas descobertas tanto podiam contrair-se sobre si mesmas, reflectindo o imobilismo e a decadência, como abrir-se à grande ambição de uma nova renascença, agora sustentada pela ideia revolucionária que parecia poder abalar o mundo ou as sociedades. O próprio Mário Dionísio, escrevendo no catálogo da 1ª Exposição Geral de Artes Plásticas, mostrava acreditar, contra os julgamentos apressados, numa tendência dominante das artes para se aproximarem entre si, perdendo algo do seu exclusivismo e vivendo porventura em função umas das outras, expressões diferentes mas solidárias, lugar onde um homem destroçado poderia buscar o caminho ou os caminhos da sua integração.
A memória desta esperança percorreu o olhar emocionado de Mário Dionísio, deixando eventuais marcas e curiosas simbioses na pintura que o seu lado de amador refaz quase secretamente. Ele diz entender que as escolhas de carácter progressista, além de não corresponderem a um caminho rectilíneo, frio entre paredes frias, também recusam os estereótipos de ontem e de hoje — porque a verdade exprime-se de muitas maneiras e as formas renovam-se em função de uma cultura perene, sob a força de raízes que nunca se diluem. A arte moderna, no conjunto das aquisições contemporâneas que foram reflectindo a mudança dos comportamentos, antes mesmo de nomenclaturas recentes e afogueadas pela moda, contém os germes de uma transformação real, a possibilidade de abertura a criações outras, vibrantes, capazes de responder sem degradação à extraordinária ambição da partilha universal das crises, das esperanças, da luta contra as longas assimetrias. Sem panfletarismo. Sem o medo falsamente cosmopolita da ilustração. Sem os dogmas desse realismo retrógado cujos temas repetidos negavam a essência da novidade e promoviam, entre obviedades, um discurso oficioso.
Claro que este impulso generoso, que Mário Dionísio protagonizou com elevação e ainda há pouco sentia enquanto pintor, poeta, ensaísta, encerrava também um perigo: aí podiam surgir, como na literatura, os autores de letras gordas — gesto maiúsculo e demagógico em torno de meras referências à catástrofe das misérias, afinal sem questionação e sem apelo pelos novos modos de formar. A síntese, bissectriz de anseios diversos, seria tão urgente como a razão do sonho. Mário Dionísio escreveu sobre essa linha ideal, oferecendo ao seu tempo uma concepção e uma prática artística que demonstravam a necessidade da sua voz empenhada, aquém e além do cartaz, próxima das grandes denúncias do cinema e da literatura, diferente dessas linguagens mas na semelhança da vocação exploratória delas, do seu poder prospectivo, da sua capacidade solidária.
Vivemos um tempo em que o diverso, justificado pelas novas tecnologias, pelo reforço da intuição e do imaginário, se fixa intensamente na procura plástica — tantas vezes em nome da salvaguarda da originalidade individual — fingindo ignorar paradoxais parecenças que atravessam continentes e oceanos, orientações próximas dirigidas pela via efémera de certos interesses mercantis, entre feiras, bienais, galerias e outros «lobbies». Os mass-media contribuem para esta universalidade suspeita, onde os indivíduos e os seus sonhos específicos afinal soçobram: com o império do ruído, contaminador da própria imagem, os grandes autores parecem ser os fakires da manipulação de efeitos, no cinema, na música ou na televisão, tudo avaliado a partir das forças da violência concorrencial, dos «picos» de audiência, das cotações bolsistas. Nenhum imaginário resiste ao fluxo de uma intuição totalmente desapoiada, nem a intuição (ela mesma) à ausência dos suportes técnicos que lhe são característicos. Com tudo isso é que acontece o projecto — o objecto de arte concluído é ainda projecto — e a intencionalização do discurso para um modo de comunicar. Discurso que se deseja também adequado às conflitualidades contemporâneas (não apenas aos optimismos eufemísticos) ou à vontade de muitos autores em não romper o fio da sua consciência comprometida no quadro de valores estéticos cuja síntese, ao nível de uma aparente utopia, aprofunda as nossas inquietações, as nossas perspectivas de futuro.
Mário Dionísio pertence a uma geração que sentiu o peso de certos holocaustos e a presença (que parecia plausível) da esperança social. Pertence ao número daqueles que tentaram assumir, com alguma lucidez, uma arte de síntese e ainda de encontro, reflexo sensível, emocionado, afirmativo da realidade do mundo — entre retratos plurais dos protagonistas da História e grandes orquestrações da palavra e da imagem, no vértice de obras exemplares ou na tese salvadora do amanhã.
Rocha de Sousa
Fev. 1989
André Spencer e F. Pedro Oliveira para Casa da Achada - Centro Mário Dionísio | 2009-2022