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sobre Mário Dionísio

 

 

Mário Dionísio, por humanismo

 

Poeta, ensaísta, pintor, contista, romancista, pintor de novo e finalmente, por ordem de entrada na cena intelectual lisboeta (e Coimbrã) nos anos quarenta neo-realistas, Mário Dionísio foi o que foi, e tomou as posições criativas e polémicas que tomou, por razões de vocação e de íntima responsabilidade de humanista que, no conjunto da sua obra e a distância já histórica, se define. Definindo-se também na sua própria personalidade de firmeza de posições, em tolerância que os anos naturalmente lhe trouxeram. E as desilusões de uma geração que envelheceu mal, sob calamitosas revoluções da história – que ou se admitiam em obediência ao partido, ou se assumiam joeiradas por uma verdade maior, de princípios que só em humanismo tinham defesa possível. Conheci Mário Dionísio tarde, com inícios de carreira apartados nas polémicas em que nos formámos, ou ele formou, nos dois ou três anos de diferença de idade, mentor que foi então, e, como tal, na linha de mira das nossas discordâncias. Conheci-o depois disso tudo, e em condições de estima. Teria eu sido o último alvo dos seus ataques de firmeza de posição política, num “Pentecórnio” de 1956? Respondi e esqueci o que só mal entendido podia ter sido, no veneno das coisas e das (outras) pessoas. E tendo ambos conhecido o Portinari ao mesmo tempo, em Paris ou em Lisboa, dez anos atrás, quando acolhi um diaporama do filho, na Fundação Gulbenkian de Paris, quarenta anos mais tarde, foi a Mário Dionísio, por direito próprio, que fiz apelo para falar do pintor brasileiro que tínhamos admirado, mesmo que em diversidade de apreços. E assim muito bem foi, na história que tínhamos para contar, pela razão de a termos vivido. Em história insisto, porque por ela há que pautar o entendimento das coisas e das acções. E, pensando em Mário Dionísio, terei sobretudo que dizer que, não como todos os intelectuais da nossa geração, ele teve uma consciência histórica, no profundo sentido da coisa. Sentiu a história passar e foi suficientemente capaz de entender porquê e como. Não que fosse historiador de formação ou vocação mas um analista que sabia, por inteligência dos fenómenos abordados, pôr as questões necessárias no momento de charneira que a cultura nacional atravessava; e nisso terá sido um agente solitário, com a devida calma e humildade. Por temperamento, não retórico nem sujeito a espantos (isso, aliás, e com justiça sua, me criticou nas prosas que eu ia escrevendo...), Dionísio lançou-se num longo ensaio, A Paleta e o Mundo, publicado em fascículos entre 1952 e 1962, dez anos que abalaram o mundo da estética, tanto como o da sociedade. Trata-se do primeiro ensaio de leitura global do fenómeno artístico, no domínio da pintura, que se escreveu em Portugal e ninguém mais estava, na altura, aprestado para tal. Tive, mais tarde, ou seja, dez anos após o termo da sua publicação, ocasião e obrigação de historiador de A Arte em Portugal no Século XX (1974), de reler e de analisar a obra, não para criticar as opiniões do autor, mas para seguir o seu traçado e a sua diligência de pensador. E para constatar, ao longo do desenvolvimento do discurso, como o tempo nacional passou e se modificou, em cultura e estilo, Mário Dionísio parte de uma série bem fundamentada de ideias, assaz românticas, em que Van Gogh se impunha (uma obra sobre o pintor publicada em 1947, primeira absoluta também, na bibliografia nacional) para rever a história da pintura ocidental desde o seu início, em Cimabue e Giotto, até ao tempo do realismo do século XIX. O seu discurso reflexivo atinge ali o ponto de crise ou de maldição, no divórcio moderno do último quartel do século, entre artistas e sociedade. E pergunta-se porquê, com razões ajustadas, para que Hauser (que seria traduzido logo em 1954, caso único também nas livrarias portuguesas) contribuiu com elementos da sua causalista sociologia da arte. Isso levou o autor a considerar três saídas para a crise que diagnosticava nos devidos termos da sua preocupação. Pelo “sonho” (e seria o surrealismo que achava finalmente “condenado”, desde a posição de Aragon, já de 1935), pela “abstracção” (que era, para ele, hauserianamente, reflexo de decadência social e sua consequência estética) ou pela “intervenção”, ou seja com o artista situando-se “ao serviço” da sociedade – como, porém? Dionísio, em 1951, pouco antes de começar o seu magno ensaio, tinha elogiado, em “Encontros de Paris”, os realistas-socialistas franceses, como Fougeron, que agora e quase que simbolicamente renegava, como fizera também Aragon. E o Jdanov que norteara as suas admirações, após a morte de Estaline, podia já ser comparado a Hitler. Como, então, se daria a intervenção do artista na sociedade? Em 1957, numa conferência que a recente Fundação Gulbenkian o convidara a fazer, na circunstância significativa da sua primeira exposição, escolhendo o melhor ensaísta em actividade para a arte contemporânea, o autor pusera esperança num "estado de equilíbrio" que era ou seria também de "saúde" social – que só o realismo podia assegurar ao homem a "reconstruir". Assim o humanista teria que pensar, nessa altura do País, mesmo que fosse vago o propósito expresso no quadro da arte portuguesa. Atravessara esta, em 1948-1952, numa polémica surrealista, e em 1952 entrara em outra, da abstracção, então no auge, situações de vanguarda que comprometiam, ao mesmo tempo, a doutrina ideológica das Exposições Gerais de Artes Plásticas esgotadas em 1956, e do próprio Estado Novo em seu, outro embora, equilíbrio – que a Fundação, entre as suas duas exposições, de 1957 e 1961, seria forçada a rever. A evolução do pensamento estético, ou socio-estético, de Mário Dionísio, no domínio mais evidente da pintura, pela honestidade da sua diligência e pelo significado que teve na cultura em curso, foi, nela, e no próprio ensaísta, um dos mais importantes factos observados neste período da tão difícil vida portuguesa.

 

José-Augusto França

in «Não há Morte nem Príncipio» - a propósito da vida e obra de Mário Dionísio, Biblioteca-Museu República e Resistência, 1996

 

 

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